sábado, 27 de outubro de 2012

Raul de Leoni e Petrópolis


Nascido (1895)  e falecido(1926)  em Petrópolis,  Raul de Leoni  foi  poeta singular cuja obra tem resistido a qualquer tentativa de enquadramento, sua poesia detendo elementos  simbolistas  ao mesmo tempo  com características de neoparnasianismo. Leoni é considerado ,e enaltecido, como um dos maiores sonestistas  brasileiros, criador de poemas  de notáveis  sonoridade e ritmo, de métricas perfeitas, repletos de metáforas e de concepções filosóficas, harmonia da unidade de pensamento, considerados dos mais perfeitos em idéia, filosofia, e essência das temáticas.
Nele, o pensamento  filosófico antecede ao literário, as nuances psicológicas sobrepõem-se ao lirismo, as reflexões prevalecem sobre o descritivo meramente estético.
Luz mediterrânea, seu único livro de poemas, publicado em 1922, obteve de imediato (apesar de sair justamente no ano de deflagração do  Modernismo) grande sucesso junto ao público e é uma das obras poéticas  mais lidas e aplaudidas da literatura brasileira :desta obra, estão aqui os poemas a seguir.
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Pórtico


Alma de origem ática, pagã,
Nascida sob aquele firmamento
Que azulou as divinas epopéias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento
E a serena elegância das idéias...

Há no meu ser crepúsculos e auroras,
Todas as seleções do gênio ariano,
E a minha sombra amável e macia
Passa na fuga universal das horas,
Colhendo as flores do destino humano
Nos jardins atenienses da Ironia...

Meu pensamento livre, que se achega
De ideologias claras e espontâneas,
É uma suavíssima cidade grega,
Cuja memória
É uma visão esplêndida na história
Das civilizações mediterrâneas.

Cidade da Ironia e da Beleza,
Fica na dobra azul de um golfo pensativo,
Entre cintas de praias cristalinas,
Rasgando iluminuras de colinas,
Com a graça ornamental de um cromo vivo:
Banham-na antigas águas delirantes,
Azuis, caleidoscópicas, amenas,
Onde se espelha, em refrações distantes,

O vulto panorâmico de Atenas...

Entre os deuses e Sócrates assoma
E envolve na amplitude do seu gênio
Toda a grandeza grega a que remonto;
Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,
Das cidades ilustres do Tirreno
Ao mistério das ilhas do Helesponto...

Cidade de virtudes indulgentes,
Filha da Natureza e da Razão,
— Já eivada da luxúria oriental, —
Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,
Confia na verdade da Ilusão
E vive na volúpia e na sabedoria,
Brincando com as idéias e com as formas...

Revendo-se num século submerso.
Meu pensamento, sempre muito humano,
É uma cidade grega decadente,
Do tempo de Luciano,
Que, gloriosa e serena,
Sorrindo da palavra nazarena,
Foi desaparecendo lentamente,
No mais suave crepúsculo das coisas...

Argila

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

Ironia!

Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!

Platônico

As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.

Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.

Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,

Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.

História antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...



Legenda dos dias

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;
E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

Canção de todos

Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!

Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:

A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...

Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,
Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.

Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.

A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das coisas
Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...

Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina

Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:

Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.

Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.

Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.

Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas

Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.

Artista

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

Fia na primavera, entre as amoras.
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...

Serenidade

Feriram-te, alma simples e iludida.
Sobre os teus lábios dóceis a desgraça
Aos poucos esvaziou a sua taça
E sofreste sem trégua e sem guarida.

Entretanto, à surpresa de quem passa,
Ainda e sempre, conservas para a Vida
A flor de um idealismo, a ingênua graça
De uma grande inocência distraída.

A concha azul envolta na cilada
Das algas más, ferida entre os rochedos,
Rolou nas convulsões do mar profundo;
Mas inda assim, poluída e atormentada,
Ocultando puríssimos segredos,
Guarda o sonho das pérolas no fundo.

Felicidade

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!
De infinitas imagens irradias
E, na dança da tua projeção,
Quanto mais cresces, mais te distancias...
A Alma te vê à luz da posição
Em que fica entre as cousas e entre os dias:
És sombra e, refletindo-te, varias,
Como todas as sombras, pelo chão...
O Homem não te atingiu na vida instável
Porque te embaraçou na filigrana
De um ideal metafísico e divino;
E te busca na selva impraticável,
Ó Bela Adormecida da alma humana!
Trevo de quatro folhas do Destino!...

Basta saberes que és feliz, e então
Já o serás na verdade muito menos:
Na árvore amarga da Meditação,
A sombra é triste e os frutos têm venenos.
Se és feliz e o não sabes, tens na mão
O maior bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.
Felicidade... Sombra que só vejo,
Longe do Pensamento e do Desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo,
Nessa tranqüilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo...

Prudência

Não aprofundes nunca, nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.
Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas raízes...
Trata-as assim, como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranqüilas.
Lembra-te dessas flores venenosas!
As abelhas cortejam de passagem,
Mas não ousam prová-las nem feri-las...

E o poeta falou

Afinal, tudo que há de mais nobre e, mais puro
Neste mundo de sombras e aparências
Fui eu quem revelou ou concebeu ..

Fui a primeira luz neste planeta obscuro!
Fui a suprema voz de todas as consciências
Fui o mais alto intérprete de Deus!

Dei alma à Natureza indiferente.
Inteligência às coisas, sentimentos
As forças cegas e automáticas do Cosmos ! ...

Acompanhei e dirigi os povos
Na sua eterna migração para o Poente;
Levantei os primeiros monumentos

E os primeiros impérios milenários:
Teci as grandes lendas tutelares.
Despertei na memória das criaturas
A sua antiga tradição divina.
Criando as religiões,  as fábulas, os mitos
Para iludir a dor universal:
Abri os horizontes infinitos:
Bebi o néctar das primeiras taças;
Plasmei os altos símbolos humanos.
Sutilizei o instinto e imaginei o amor;
Fui a força ideal das civilizações !
O gênio transfigurador da História !
O espírito anônimo dos séculos
E. harmonioso. profético. profundo.
Passei humanizando as coisas pelo mundo.
Para divinizar os homens sobre a Terra !

Exortação

Sê na Vida a expressão límpida e exata
Do teu temperamento, homem prudente;
Corno a árvore espontânea que retrata
Todas as qualidades da semente !

O que te infelicita é sempre a ingrata
Aspiração de uma alma diferente,
É meditares tua forma inata,
Querendo transformá-la, de repente !

Deixa-te ser ! ... e vive distraído
Do enigma eterno sobre que repousas,
Sem nunca interpretar o seu sentido !
 
E terás, de harmonia com tua alma,
Essa felicidade ingênua e calma,
Que é a tendência recôndita das coisas !

Egocentrismo

Tudo que te disserem sobre 'a Vida,
Sobre o destino humano, que flutua,
Ouve e medita bem, mas continua
Com a mesma alma liberta e distraída !

Interpreta a existência com a medida
Do teu Ser ! (a verdade é uma obra tua!)
Porque em cada alma o Mundo se insinua,
Nurna nova Ilusão desconhecida.

Vai pelos próprios passos, num assomo
De quem procura por si próprio o fundo
Da eterna sensação que as coisas têm !

Sabedoria

Tu que vives e passas, sem saber
O que é a vida nem porque é, que ignoras
Todos os fins e que, pensando, choras
Sobre o mistério do teu próprio Ser.

Não sofras mais à espera das auroras
Da suprema verdade a aparecer:
A verdade das coisas é o prazer
Que elas nos possam dar à flor das horas ...

Essa outra que desejas, se ela existe,
Deve ser muito fria e quase triste,
Sem a graça encantada da incerteza ...

Vê que a Vida afinal - sombras, vaidades –
É bela, é louca e bela, e que a beleza
É a mais generosa das Verdades ...

Sei de tudo

Sei de tudo o que existe pelo mundo.
A forma, o modo, o espírito e os destinos.
Sei da vida das almas e aprofundo
O mistério dos seres pequeninos.
Sei da ciência do Espaço, sei o fundo
Da terra e os grandes mundos submarinos,
Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo
Que há entre os passos humanos e os divinos.
Sei de todas as cousas, a teoria
Do Universo e as longínquas perspectivas
Que emergem da expressão das cousas vivas.
Sei de tudo e — oh! tristíssima ironia! —
Pelo caminho eterno por que vou,
Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...

A última canção do Homem...

Rei da Criação, por mim mesmo aclamado,
Quis, vencendo o Destino, ser o Rei
De todo esse Universo ilimitado
Das idéias que nunca alcançarei...
Inteligência... esse anjo rebelado
Tombou sem ter sabido a eterna lei:
Pensei demais e, agora, apenas sei
Que tudo que eu pensei estava errado...
De tudo, então, ficou somente em mim
O pavor tenebroso de pensar,
Porque as idéias nunca tinham fim...
Que mais resta da fúria malograda?
Um bailado de frases a cantar...
A vaidade das formas... e mais nada...

Raimundo Correia e Petrópolis



A cidade teve a auspiciosa oportunidade de abrigar, no periodo 1899-1900 (significativa saudação ao ano novo, pode-se ver)  um  dos grandes poetas brasileiros – como diretor e professor no Ginásio Fluminense de Petrópolis (instituto oficial de ensino,em prédio na avenida Piabanha, defronte ao Palácio de Cristal.,inaugurado  em 15 de março de 1899, funcionou  até 1902 – prejudicado pelo agravamento da então crise financeira do Estado do Rio, já  sob a direção de Quintino Bocaiúva) .Catalogado como um dos representantes máximos do Parnasianismo (ao lado de Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho),Raimundo Correia(Barra da Magunça,MA,1859 -- Paris,França,1911)-- autor , segundo Manuel Bandeira, de “alguns dos versos mais misteriosamente belos da nossa língua." --  valoriza em sua poética “o sentido plástico das descrições da natureza, de linguagem  clara, precisa, o gelo descritivista quebrado por uma emoção genuína,  fina melancolia  que humanizava a paisagem” , ao mesmo tempo em que  se denotam traços de  evolução da índole romântica para um certo idealismo político – social (tinha consciência da função da literatura e do papel do escritor na sociedade, e não ficou alheio a seu tempo, como expressa no poema “Ao Poder Público”, de 1880).
Características que, de resto, permeiam todas suas obras, desde a inaugural  Primeiros sonhos (1878),e em seqüência Sinfonias(1883) -- na qual se encontra um dos mais conhecidos sonetos da literatura brasileira, “As pombas...” -- Versos e versões (1887),Aleluias (1891), Poesias (1898), e  as edições póstumas de  Poesias completas(1948)  e  Poesia completa e prosa. Além de poesia, deixou obras de crítica, ensaio e crônicas.
______________.

As pombas...

Vai-se a primeira pomba despertada ...
Vai-se outra mais ... mais outra ... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada ...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Mal secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Amor e vida

Esconde-me a alma, no íntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.

A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!

Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!

E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, ó meu único tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!

Ao Poder Público
(1 de janeiro de 1880)

Tu que és da direção das massas investido,
Tu que vingas o crime e que o Povo defendes,
E executas a lei penal, e do bandido
No topo de uma forca, o cadáver suspendes;

Tu que tens o canhão, a tropa, a artilharia,
Tu mesmo és quem fuzila a inerme populaça;
Incurso está também no Código e devia
P'ra ti também se erguer um forca na praça!



sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Joaquim França Junior e Petrópolis


Considerado um ‘herdeiro’ – no sentido literário e teatral – de Martins Pena (o que o torna historicamente o segundo mais importante autor do teatro brasileiro) e, depois, muito ligado a Arthur Azevedo, na tradição cômica, o carioca Joaquim França Júnior viveu seus 52 anos (Rio de Janeiro, 1838--Poços de Caldas,1890) em prol do teatro, numa  carreira iniciada  em 1861, focalizando,e satirizando, em cerca de duas dezenas de comédias  de costumes e sátiras políticas de grande sucesso, “a ambição e os jogos de  interesse” nas relações interpessoais na sociedade de então,com enredos aparentemente anedóticos, de linguagem coloquial, jogo cênico rápido, ambigüidades e grande noção de ritmo teatral, criando   pequenas caricaturas do cotidiano e da família fluminense, além de parodiar criticamente os privilégios concedidos pelo  governo brasileiro ao  "estrangeiro", sobretudo o "inglês".
Petrópolis recebeu de França Junior duas ambientações: “De Petrópolis a Paris”, encenada em 1889,  mas desaparecida , e esta “Dois proveitos em um saco”,de 1881, aqui apresentada.
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Dois proveitos em um saco

PERSONAGENS

AMÉLIA TEIXEIRA
LUÍS TEIXEIRA, seu marido
CATARINA, criada alemã
BOAVENTURA FORTUNA DA ANUNCIAÇÃO

A cena passa-se em Petrópolis, no verão de 1873.

ATO ÚNICO

Sala regularmente mobiliada

CENA I

AMÉLIA e CATARINA

AMÉLIA (mirando-se em um espelho.) - Como achas este vestido?
CATARINA - Vai-lhe às mil maravilhas, minha ama.
AMÉLIA - Lisonjeira.
CATARINA - Somente tenho que fazer-lhe uma observação. Permite-me?
AMÉLIA - Fala.
CATARINA - Parece-me que se a cauda fosse mais pequena...
AMÉLIA - Tola, tu não sabes o que é o chique.
CATARINA - Pois olhe, não é isto o que diz o seu Antonico Mamede.
AMÉLIA - E quem é este senhor Antonico?
CATARINA - Seu Antonico Mamede é um moço louro, que costuma ir todos os sábados ao baile alemão. Aquilo é que é rapaz de truz Se minha ama visse com que graça e elegância ele dança a polca!...
AMÉLIA - Oh! atrevida! Tu queres fazer-me confidências amorosas?
CATARINA - Minha ama não namorou também ao senhor Teixeira antes de se casar com ele? Ainda me lembro quando aqui chegaram em novembro do ano passado, para passarem a lua de mel. Vinham tão agarradinhos que dir-se-ia um casal de pombos batedores. E como estava este chalé! Era um brinco!
AMÉLIA - E os tais oito dias oficiais da lua de mel prolongaram-se até hoje graças ao belo clima de Petrópolis. Ser condenada a passar aqui uma vida inteira, sem ter uma distração no inverno, contemplando, saudosa, todos os anos, esses bandos de andorinhas que voam para a corte, apenas o arvoredo começa a perder o brilho de suas folhas verde-negras. Ora, diz-me uma coisa. Este seu Antonico sofre do fígado?
CATARINA - Do fígado?! Que lembrança! É um rapagão sadio como há poucos.
AMÉLIA - Olha, Catarina, quando ele te pedir a mão, manda-o examinar atentamente por um médico e se tiver a tal víscera estragada, casa-te, mas não venhas passar a lua de mel em Petrópolis. Toma a receita e não te darás mal com ela. Antes de me levar ao altar, disse-me o senhor Teixeira: - Vamos para Petrópolis, meu anjo; lá passaremos oito dias, respirando o ar puro dos campos, embalsamado pelo perfume suave das flores, em um pitoresco chalé que mandei alugar na rua de dona Francisca. Acordaremos ao romper da aurora, ao cântico dos passarinhos e juntos, bem juntos, como se fôramos duas almas em um só corpo, escreveremos a página a mais feliz da nossa vida naquele Éden de delícias. A perspectiva do quadro agradou-me. Passar a lua de mel no campo era um requinte do bom tom, que até certo ponto lisonjeava-me o amor próprio de moça elegante. Quando aqui chegamos, no começo do verão, Petrópolis começava a animar-se, e os oito dias correram velozes como um raio. Trazia as malas cheias de luxuosas toaletes. Escusado é dizer-te que regalei-me de arrastar sedas por estes campos. Passados os oito dias, disse-me meu marido que dava-se perfeitamente com este clima e que havia resolvido ficar mais dois meses. Aceitei a idéia. Aproximava-se o inverno, Petrópolis começava a despovoar-se e o senhor Teixeira, que se sentia cada vez mais sadio e nutrido, foi-se deixando ficar por aqui, como se estivera no paraíso. Em um belo dia apareceu-me ele todo expansivo e batendo-me no rosto com aquela afabilidade que lhe é peculiar, cravou-me em cheio no peito esta punhalada: - Amélia, dou-te a agradável notícia de que comprei este chalé e que não sairemos mais de Petrópolis. Quero restabelecer-me para sempre destas malditas cólicas de fígado. Ah! o fígado do meu marido! O fígado do meu marido! (Levanta-se.)
CATARINA - Porém, o que deseja mais, minha ama? Não vive aqui porventura tão feliz? Tem carro para passear todas as tardes ao alto da serra, mora em uma excelente casa, meu amo a adora.
AMÉLIA - No verão. (vai ao espelho.)
CATARINA - Está bem relacionada, todos a estimam, ouve música aos domingos no passeio público...
AMÉLIA - No verão.
CATARINA - Vai às partidas do clube, aos bailes do hotel Bragança...
AMÉLIA - No verão! Mas no inverno, desgraçada, o que fico aqui fazendo?
CATARINA - Come excelente manteiga fresca, magnífico pão de cerveja, bebe bom leite e passeia.
AMÉLIA - E hei de passar aqui a minha mocidade, enquanto que outras mais felizes do que eu dançam no Cassino, vão às corridas do Jóquei Clube, divertem-se pelos teatros, gozam, enfim, de todos os prazeres da corte! Se soubesses como fico, quando neste ermo leio os jornais de maio a outubro! Nunca viste contar a história de certo sujeito que não tendo dinheiro para comer costumava colocar-se todos os dias à porta de um hotel e aí saboreava um pedaço de pão duro, aspirando o perfume das iguarias que partiam da sala de jantar? Assim sou eu quando recebo notícias da corte durante o inverno.
CATARINA - Tenha fé em Deus, minha ama. Não havemos de ficar aqui eternamente.
AMÉLIA - Que horas são?
CATARINA - Oito horas. Vosmecê não vai buscar meu amo? Hoje é domingo e os carros da serra devem chegar às dez.
AMÉLIA - Não; espero-o aqui. Antes de partir fizemos uma Philippina que vai decidir da minha sorte e não quero perder a única ocasião que tenho de mudar-me de uma vez para a corte.
CATARINA - Uma Philippina?! O que vem a ser isto, minha ama?
AMÉLIA - Eu te explico. Como sabes, Teixeira foi para o Rio a fim de tratar de um negócio importante, não querendo levar-me, sob pretexto de que a febre amarela lá está grassando com muita intensidade. Anteontem, quando jantávamos, descobri por acaso, à sobremesa, duas amêndoas unidas sob o mesmo invólucro. Comendo uma, e entregando outra a meu marido, disse-lhe J'y pense.
CATARINA - Gypança?
AMÉLIA - J'y pense é um jogo em que as mulheres ganham sempre e os homens perdem.
CATARINA - E em que consiste este jogo?
AMÉLIA - No seguinte: logo que Teixeira encontrar-me, se ao receber um objeto qualquer de minhas mãos não disser imediatamente J'y pense, terá de pagar uma prenda e o mesmo acontecerá comigo em idênticas circunstâncias.
CATARINA - Que excelente jogo! E a senhora ganha com toda a certeza, porque ele não tarda a chegar e (dando-lhe uma carta.) pode meter-lhe logo nas mãos esta carta que há pouco vieram aqui trazer.
AMÉLIA - Magnífico! (guarda a carta.) Aposto, porém, que não sabes quais foram as condições que estabelecemos.
CATARINA - Se meu amo perder, dá à minha ama um bonito bracelete.
AMÉLIA - Qual bracelete! Se Teixeira perder muda-se de uma vez para a corte e se eu tiver a desgraça de ser codilhada, bordo-lhe um par de chinelas.
CATARINA - E meu amo estará pelos autos?
AMÉLIA - Que remédio! Comprometeu a sua palavra de honra!
CATARINA - Então tome cuidado que ele há de fazer todo o possível por ganhar.
AMÉLIA - Veremos. Logo que o carro parar no portão, vem avisar-me. Arranja esta sala e manda preparar o almoço. (sai.)

CENA II

CATARINA e depois BOAVENTURA

CATARINA (arrumando a sala) - Muito sofre esta pobre moça, coitada! Ah! Se eu tivesse a fortuna que ela possui, como não seria feliz ao lado do meu Antonico! É verdade que eu o amo e ele me adora, mas o ofício de fazer bengalas não dá para viver e não há remédio senão ir dançando polcas até que lhe sopre alguma aragem de felicidade.
BOAVENTURA (entrando com uma mala e parasitas.) - Ora, muito bons dias.
CATARINA (assustando-se.) - Ah! que susto!
BOAVENTURA - Não se incomode comigo. Onde está a dona da casa? Faça o favor de guardar esta mala. Eu fico em qualquer quarto. Não sou homem de cerimônias. Peço-lhe que tenha cuidado com as parasitas.
CATARINA - Mas quem é o senhor? O que quer?
BOAVENTURA - Sou um homem, como vê. Vim passar alguns dias em Petrópolis e não hei de dormir no meio da rua.
CATARINA - Mas isto aqui não é hotel.
BOAVENTURA - Já sei o que vem dizer-me. Dos hotéis venho eu, não me conta nada de novo. Que noite! Se eu lhe disser que ainda não preguei olho até agora, talvez não acredite.

CATARINA - E o que tenho eu com isto?
BOAVENTURA - O que tem a senhora com isto?! Decididamente isto é uma terra de egoístas! Onde está a dona da casa, quero me entender com ela.
CATARINA - Tome a sua mala, vá-se embora, senhor.
BOAVENTURA - Sair daqui? Nem que me rachem de meio a meio.
CATARINA (atirando a mala e as parasitas no chão.) - Eu já lhe mostro. (sai.)
BOAVENTURA - Não me esbanda-lhe as parasitas.

CENA III

BOAVENTURA e depois AMÉLIA

BOAVENTURA - E dizer-se que vem gente a esta terra para divertir-se! Pois não! Que belo divertimento, senhor Boaventura. Sair um cidadão da corte com o sol a pino, suando por todos os poros, andar aos trambolhões da barca para o caminho de ferro, do caminho de ferro para os carros, chegar aqui quase ao cair das sombras, percorrer os hotéis um por um e ouvir da boca de todos os locandeiros esta frase consoladora: - Não há mais quartos, estão todos ocupados. Quem me mandou vir a Petrópolis! Pois eu não podia estar agora muito a gosto no beco do Cotovelo, aspirando o ar puro da praia de D. Manoel? Quem me mandou acreditar em caraminholas de febre amarela?
AMÉLIA (entrando.) - O que deseja, senhor?
BOAVENTURA - Sente-se, minha senhora, (dando-lhe uma cadeira.) e faça o favor de ouvir-me com toda atenção.
AMÉLIA (à  parte.) - E então? Não é ele que vem oferecer-me cadeiras em minha casa?
BOAVENTURA - Tenha a bondade de sentar-se.
AMÉLIA - Estou bem.
BOAVENTURA - Uma vez que quer ouvir-me em pé, não faça cerimônias.
AMÉLIA - O seu comportamento não tem explicação.
BOAVENTURA - Explica-se da maneira a mais fácil possível.Chamo-me Boaventura Fortuna da Anunciação, tenho cinqüenta e dois anos, sou solteiro e vim para Petrópolis passar estes três dias santos aconselhado pelos médicos.
AMÉLIA - Não tenho o prazer de conhecê-lo.
BOAVENTURA - As relações adquirem-se e é por isto que estou me apresentando.
AMÉLIA (À parte.) - É inaudito!
BOAVENTURA - Eu bem sei que deve ser até certo ponto estranhável este meu procedimento, mas estou certo de que a senhora no meu lugar faria o mesmo. Faria o mesmo, sim, não se admire; porque, enfim, não havendo mais lugares nos hotéis, é justo que se entre pela primeira porta que se encontra aberta para pedir uma pousada.
AMÉLIA - Ah! Agora compreendo. E pensa o senhor que a minha casa é estalagem?
BOAVENTURA - A senhora diz isto porque não imagina a balbúrdia que vai por aí. (mudando de tom.) É verdade, o seu nome? Como temos de morar juntos por alguns dias, é justo que saiba desde já com quem vou ter a honra de tratar.
AMÉLIA (à parte.) - E então?
BOAVENTURA - Tem cara de que se chama Bonifácia! Aposto que acertei. Que sarilho, dona Bonifácia! O Bragança está cheio como um ovo: dorme-se ali por toda a parte, sobre os bilhares, sobre a mesa de jantar, a de cozinha, em cima do piano, pelos corredores, na escada, até a própria sala do baile alemão já foi transformada em dormitório. O Du Jardin está que é uma lua cheia, o MacDowalis vomita gente pelas janelas e portas.
AMÉLIA - Ainda tem o recurso do hotel dos Estrangeiros, senhor.
BOAVENTURA - Pois não, fresco recurso! Cansado de andar correndo Seca e Meca, fui lá bater anteontem, às 9 horas da noite e a muito custo consegui que dois hóspedes que lá estavam e que deviam dormir na mesma cama, cedessem-me um lugar no meio, observando-me o dono da casa que nada tinha que pagar por ser aquilo um obséquio que os dois sujeitos me faziam. Instalei-me no centro e quando principiava a conciliar o sono, começaram os companheiros das extremidades a brigar por causa do lençol. O dito era na realidade um pouco curto! Um puxava daqui, outro dacolá, até que afinal um deles zangado perguntou-me: o senhor também não puxa? Eu que me achava bem acomodado e que estava gostando do fresco, disse-lhe: - Meu caro senhor, eu não puxo porque não paguei. Não acha que respondi bem?
AMÉLIA - Esta resposta define-o.
BOAVENTURA - Os tais companheiros não quiseram mais me receber. Ontem dormi ao relento nos bancos da porta do hotel deBr agança. Sabe a senhora dona Bonifácia o que é dormir aqui ao relento, alumiado pelos pirilampos, ouvindo uma orquestra diabólica de sapos? Hoje não estou disposto a passar a mesma noite e portanto instalo-me aqui. A casa convém-me, é bastante espaçosa, arejada, está em um belo sítio.
AMÉLIA - Ou eu estou sonhando ou o senhor é de um desfaçamento sem igual!
BOAVENTURA - Nem uma nem outra coisa.
AMÉLIA - Quer então instalar-se aqui?
BOAVENTURA - Se não lhe der isto grande incômodo...
AMÉLIA - Ah! Essa é boa! Provavelmente há de querer também que lhe dê carro para ir ao bois todas as tardes, um ginete para ir à Cascatinha.
BOAVENTURA - Não, eu cá dispenso essas coisas; prefiro boa mesa e boa cama. Mas, agora reparo, a senhora tem um vestido chibante.
AMÉLIA - Acha?
BOAVENTURA - Gosto de ver como anda esta gente por aqui! Caudas de seda e de veludo a varrerem a lama das ruas, os homens todos enluvados com enormes catimplórias na cabeça e alguns até de casaca com luvas cor de papo de canário. Gosto disto. Assim é que eu entendo viver em campo. Porém, eu estou tomando-lhe o tempo. Vá tratar de arranjo da casa. Provavelmente ainda não almoçou e enquanto se prepara o almoço, há de permitir-me que me entregue por alguns momentos à leitura.
AMÉLIA (à parte.) - Estou pasma. (Boaventura senta-se, tira um livro do bolso e lê.) O que está lendo?
BOAVENTURA - Um livro precioso.
AMÉLIA - Deveras?
BOAVENTURA - Preciosíssimo!
AMÉLIA - O que vem a ser então esse livro?
BOAVENTURA - Intitula-se: Manual prático do celibatário. É a vigésima edição.
AMÉLIA - Deve ser uma obra interessante.
BOAVENTURA - Interessantíssima. Este livro jamais me abandona. É o meu breviário, o meu evangelho, a cartilha por onde rezo...
AMÉLIA - Sim? Estou curiosa por saber o que ele contém.
BOAVENTURA - Nada mais nada menos que todos os meios de que uma mulher pode lançar mão para enganar um homem.
AMÉLIA - E estão aí todos esses meios?
BOAVENTURA - Todos, todos, um por um. A este filantrópico livrinho devo a liberdade de que gozo. Leio-o todos os dias pela manhã, em jejum, ao meio-dia e à noite antes de me deitar.
AMÉLIA - Acho-o pequeno demais para a vastidão do assunto.
BOAVENTURA - Oh! mas isto é essência e essência muito fina.
AMÉLIA - De maneira que não há mulher que possa hoje enganá-lo.
BOAVENTURA - Desafio a mais pintada.
AMÉLIA (à parte.) - Este homem é um original! Oh! Que idéia! Não há dúvida, é um presente que o céu me envia para realizar o que pretendo. Mãos à obra. (alto com meiguice.) Senhor Boaventura?
BOAVENTURA - O que é, dona Bonifácia?
AMÉLIA - Não me trate por este nome. Eu me chamo Amélia Teixeira, a mais humilde de suas criadas.
BOAVENTURA - Oh! Minha senhora! (à parte.) Que metamorfose!
AMÉLIA - Não acha bonito o nome de Amélia?
BOAVENTURA - Encantador! Conheci uma Amélia a quem amei com todas as veras de minha alma.
AMÉLIA - Ah! Já amou?
BOAVENTURA - Muito!
AMÉLIA - Acaso poderei saber quem era essa criatura feliz, esse ente venturoso, com quem o senhor repartiu os tesouros de um afeto tão puro? (lançando um olhar lânguido.)
BOAVENTURA - Pois não, minha senhora. Era minha avó. (à parte.) E esta! Que olhos que me deita!
AMÉLIA (suspirando.) - Ai! Ai!
BOAVENTURA (à parte.) - Suspira para aí que comigo não arranjas nada.
AMÉLIA - Senhor Boaventura?
BOAVENTURA - Minha senhora?...
AMÉLIA - Não conhece febre?
BOAVENTURA - Todos nós mais ou menos somos médicos. Está doente?
AMÉLIA - Não me sinto boa.
BOAVENTURA - O que tem?
AMÉLIA - Uma dor aqui. (aponta para o coração.)
BOAVENTURA - Isto é constipação. Tome um chá de sabugueiro, abafe-se bem e ponha um sinapismo na sola dos pés. (à parte.) Não me apanhas não, mas é o mesmo.
AMÉLIA - Tenha a bondade de examinar o meu pulso.
BOAVENTURA (à parte.) - E esta! (levanta-se e examina-lhe o pulso, à parte.) Que mão, santo Deus! (alto.) Não é nada. (à parte.) Cuidado, senhor Boaventura. Faça-se firme e compenetre-se das verdades preciosas do seu livrinho. (senta-se e continua a ler.)
AMÉLIA (à parte.) - Está a cair no laço. (alto.) Chegue a sua cadeira mais para cá.
BOAVENTURA - Estou bem aqui, minha senhora.
AMÉLIA - Ora, chegue-se mais para cá, eu lhe peço.
BOAVENTURA - E que aí deste lado bate o sol...
AMÉLIA - E o senhor tem medo de queimar-se?
BOAVENTURA (à parte.) - Não há dúvida! Esta mulher está mesmo me provocando.
AMÉLIA - Chegue a sua cadeira.
BOAVENTURA (à parte.) - Sejamos forte. (chega a cadeira.)
AMÉLIA - Feche este livro. Vamos conversar. (fecha o livro.)
BOAVENTURA (à parte.) - Que olhos! Parecem lanternas! Estou aqui, estou perdido.
AMÉLIA - Dê-me a sua mão.
BOAVENTURA (dando a mão, à parte.) - Santa Bárbara, São Jerônimo! Que veludo!
AMÉLIA - Diga-me uma coisa. Nunca amou a mais ninguém neste mundo, senão a sua avó?
BOAVENTURA - Se quer que lhe responda, largue-me a mão.
AMÉLIA - Por quê?
BOAVENTURA - É que estou sentindo uns arrepios como se estivesse com sezões.
AMÉLIA - Diga. Nunca amou a ninguém?
BOAVENTURA (terno.) - Não, porém agora sinto que se opera dentro de mim uma revolução como jamais senti. Eu amo uns olhos negros que me fascinaram, mas largue a minha mão pelo amor de Deus, não me perca.
AMÉLIA (à parte, rindo-se.) - Ah! ah! ah!
BOAVENTURA - Sim, eu amo uma... amo... quero dizer... amo uma mulher, que é a estrela do meu firmamento. (à parte.) Já não sei o que digo. Atiro-me de joelhos aos pés dela, e está tudo acabado.
AMÉLIA - E quem é essa mulher?
BOAVENTURA (atirando-se de joelhos.) - Dona Amélia, tenha pena de um desgraçado que a adora. A seus pés deposito o meu nome e a minha fortuna!

CENA IV

os mesmos e CATARINA

CATARINA (entrando às pressas.) - Minha ama, minha ama, meu amo chegou. Aí vem o carro.
AMÉLIA - Jesus!
BOAVENTURA - Teu amo? Então a senhora é casada?
AMÉLIA - Sim, senhor e com um homem que é ciumento como um Otelo!
BOAVENTURA - Mas por que não me disse isto logo!
AMÉLIA - Saia, senhor: se ele pilha-o aqui, mata-o.
BOAVENTURA - Estou arranjado! (para Catarina.) Dá cá a minha mala e as parasitas.
CATARINA - Ande, senhor, avie-se. (Boaventura vai a sair pela porta do fundo.)
AMÉLIA - Por aí não; vai esbarrar-se com ele.
BOAVENTURA - Quem me mandou vir a Petrópolis?!
AMÉLIA - Esconda-se ali, naquele quarto.
BOAVENTURA - E depois?
AMÉLIA - Esconda-se ali, já lhe disse. (Boaventura esconde-se no quarto, Amélia tranca a porta e fica com a chave.)

CENA V

AMÉLIA, CATARINA e depois LUÍS

CATARINA - O que fazia aquele sujeito a seus pés, minha ama?
AMÉLIA - Saberás daqui a pouco.
LUÍS (entrando com uma mala e diversos embrulhos.) Querida Amélia. (dá-lhe um beijo. Catarina toma a mala e os embrulhos.)
AMÉLIA - Que saudades, Luís! Estes dois dias que estiveste na corte pareceram-me dois séculos.
LUÍS - Foi o mesmo que me aconteceu, meu anjo. Venho cheio de abraços e beijos que te enviam tua mãe, as manas, tuas primas... É verdade, a Lulu manda-te dizer que morreu aquele celebérrimo felpudo que lhe deste.
AMÉLIA - O Jasmim? Coitadinho!
LUÍS - Lá ficou toda chorosa. Está inconsolável a pobre menina. Como vai isto por aqui?
AMÉLIA - Cada vez melhor.
LUÍS - Tem subido muita gente?
AMÉLIA - Não imaginas. Anteontem vieram vinte e dois carros, ontem outros tantos... Isto está que é um céu aberto. Que luxo, Luís!
LUÍS - Trouxe-te duas ricas túnicas que comprei na Notre Dame. Disse-me o caixeiro que eram as únicas que vieram.
AMÉLIA - E como deixaste o Rio?
LUÍS - Está que é uma fornalha do inferno, Amélia. A febre amarela de mãos dadas com o calor, a bexiga, a companhia City lmprovements e o canal do Mangue têm matado gente que é uma coisa nunca vista. Lê o obituário e verás. Ontem fui ao Alcazar...
AMÉLIA - Ah! Tu foste ao Alcazar?
LUÍS - Mas não pude aturar mais do que o primeiro ato da peça. Saí alagado! (vendo Catarina, que deve estar inquieta olhando para à porta por onde entrou Boaventura.) Mas que diabo tem esta rapariga que está tão assustada?
CATARINA - Não tenho nada, não, senhor.
AMÉLIA - É que...
LUÍS - É que o quê?
AMÉLIA - É que na tua ausência deu-se aqui uma cena um pouco desagradável...
LUÍS - Uma cena desagradável?!
AMÉLIA - Sim...
LUÍS - Mas que cena foi esta?
AMÉLIA - Não te amofines, eu te peço.
LUÍS - Fala... que estou sobre brasas.
AMÉLIA - Prometes-me que não darás escândalo?
LUÍS - Amélia, eu tremo de adivinhar.
AMÉLIA - Adeus, adeus: se começas deste modo não conseguirás coisa alguma.
LUÍS - Anda, fala.
AMÉLIA - Introduziu-se há pouco um sedutor em minha casa...
LUÍS - Um sedutor?! Onde está ele?! Onde está este miserável?
AMÉLIA - Ajudada por Catarina e pelos escravos consegui prendê-lo naquele quarto, a fim de que pudesse receber de tuas mãos o castigo que merece.
LUÍS - Tu me pagarás já, patife. (vai à porta do quarto.)
AMÉLIA - Onde vais?
LUÍS - Sufocar o bigorrilhas.
AMÉLIA - Queres arrombar a porta?... Espera. Toma a chave.
LUÍS - Dá cá; dá cá. (recebe a chave.)
AMÉLIA (rindo-se.) - Ah! ah! ah!
LUÍS - E tu te ris?
AMÉLIA - J'y pense, j'y pense.
CATARINA - Ah! ah! É boa, é boa. Foi o primeiro objeto que meu amo recebeu e portanto perdeu o jogo.
LUÍS - Ah! velhaca! Lograste-me.
AMÉLIA - Ah! ah! ah! Confessa que perdeste e que foi uma maneira engenhosa de eu ganhar a Philippina.
LUÍS - És mulher e basta.
AMÉLIA - Lembras-te do que convencionamos?
LUÍS - Sim, levar-te-ei para a corte todos os invernos. Mas olha que me meteste um susto!...
AMÉLIA (para Catarina.) - Apronta o almoço. (para Luís.) Vai mudar de roupa.
LUÍS - Velhaca... (sai.)

CENA VI

AMÉLIA e BOAVENTURA

AMÉLIA (abrindo a porta.) - Saia, senhor.
BOAVENTURA - Já se foi?
AMÉLIA - Já.
BOAVENTURA - Não me meto em outra. Parto para a corte e não me apanham tão cedo.
AMÉLIA - Antes de sair diga uma coisa.
BOAVENTURA - O que é, minha senhora?
AMÉLIA - Ouviu o que se acaba de passar entre mim e meu marido?
BOAVENTURA - Ouvi tudo, mas não compreendo coisa alguma.
AMÉLIA - Não me disse há pouco que naquele livro encontram-se todos os recursos de que uma mulher pode servir-se para enganar um homem?
BOAVENTURA - Sim, senhora.
AMÉLIA - Pois acrescente lá esse meio de que uma mulher lançou mão para enganar a dois homens. Ah! ah! ah! Boa viagem.
(Boaventura sai.)

Cai o pano.




































quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Olavo Bilac e Petrópolis


Pelo teor da admiração e louvação desmedidas, externadas na crônica a seguir, Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 1865-- Rio de Janeiro,1918) conhecia, e muito bem, Petrópolis – mercê de suas constantes  visitas à cidade, aliás comuns para  muitos dos intelectuais,literatos,escritores e artistas e para  a sociedade fluminense em geral. As belezas naturais e sociais da cidade são enfatizadas por um cronista – aqui com o pseudônimo Fantasio, um dos vários que utilizou na imprensa (como de resto a imensa maioria dos escritores) – então já feito celebridade nacional, consagrado como “o príncipe dos poetas brasileiros”, inclusive tendo participado do grupo que fundara a Academia Brasileira de Letras,  e no auge de sua carreira de jornalista, iniciada em 1888 (assim como na vida literária) : assumira  logo no início deste ano de 1897 o ‘posto’  de Machado de Assis,que se afastara,  como principal cronista da Gazeta de Notícias, então o melhor e mais prestigiado  jornal do pais. Em mais de  vinte anos de jornalismo diário,  Bilac não titubeou em opinar sobre os mais diversos assuntos que interessassem diretamente à organização da sociedade civil -- tudo era assunto, tudo era motivo de sua atenção:urbanização, saúde pública, defesa do menor, escândalos políticos, ingerência da Igreja no Estado, festas populares, carestia, segurança urbana, deficiência do transporte público, violência sexual, política internacional, emancipação feminina,lançamentos literários, as cidades – ainda mais aquelas dotadas de características especiais, como Petrópolis.
Poeta, cronista, contista, Bilac legou uma obra eclética, como poucos o fizeram na literatura brasileira – entre elas : Poesias (1888);  Crônicas e novelas (1894); Crítica e fantasia (1904); Conferências literárias (1906); Dicionário de rimas (1913); Tratado de versificação (1910); Ironia e piedade, crônicas (1916); Através do Brasil (com Manuel Bonfim); Contos pátrios ; Terra  fluminense ; Livro de leitura ; Livro de composição ; Poesias infantis ; Teatro infantil; Dicionário analógico  A Defesa Nacional (discursos)
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Petrópolis

Petrópolis ... Falemos de Petrópolis, amigo leitor...
Há nos noticiários, às vezes, coisas que me irritam desmarcadamente. Esta, por exemplo. "Ontem, em Petrópolis, houve uma conferência política... ", ou esta: "Em Petrópolis, o presidente do estado ", ou ainda esta: "No 1º. distrito eleitoral de Petrópolis... " Santo Deus! por que há de haver política, por que há de haver presidente de estado, por que há de haver eleições em Petrópolis?
Todas essas coisas chatas e vulgares deviam ficar em Niterói, à beira-mar, nas ruas baixas e feias : a política dá-se bem, ali, com o cheiro de maresia, com a umidade, com o calor, com o suor, e com os bondes da Cantareira !
Mas em Petrópolis ! a oitocentos metros acima do mar, no pináculo verde da serra da Estrela, perto do céu, perto dos astros, perto de Deus ! naquela altura abençoada que possui todas as manhãs os primeiros bafejos da luz ! naquele paradisíaco retiro tão alto, que à noite a gente quase chega a poder conversar com os habitantes vermelhos de Marte e com as habitantes alvas de Vênus ! A política ali, e as conferências, e as secretarias, e as tricas eleitorais, e as urnas, que, como mulheres fáceis, se deixam violar por todo mundo!... É horrível !
Quisera eu,  que todo mundo, ao subir a serra, ao chegar à estação de Petrópolis, sentisse, completa e cabal, uma verdadeira ressurreição da alma -- lembrando-se de que todas as coisas tristes da vida, os negócios, o trabalho, a política, a ambição, a hepatite, a dispepsia, o mexerico, ficaram cá embaixo, no atoleiro mercantil da cidade, sem asas para poder galgar a montanha verde, em que a Natureza irradia com tanta beleza, e onde há o culto do conforto e do luxo.
Calma e linda cidade, feita para as recatadas delícias das luas-de-mel, para os comedidos e fidalgos flirts, para o doce e bem-aventurado ócio, filho da Ventura, pai dos Sonhos que embalam a alma! -- que idéia foi essa de te converter em capital de estado?
Ainda eu compreendo a existência das tuas fábricas de tecidos, ó Petrópolis ! principalmente de fábricas em que não haja abuso de vapor, mas abuso de água, de muita água cristalina e rumorosa, espumando nas represas, movendo os teares -- água fresca e alegre, cuja voz canta a beleza dos sítios agrestes e perfumados, de onde desce para vir ajudar o trabalho dos homens. Mas a existência das repartições de estado, isso é que não, Petrópolis, isso é que não!
Mas Deus é grande! A burocracia, mais cedo ou mais tarde, se há de aborrecer da pureza daquele ar, e há de descer à sua rasa e abominável planície. Nesse dia, Petrópolis não terá nenhum defeito...
Há quem prefira Teresópolis ou Friburgo ; há quem, mais amigo ainda da natureza virgem, prefira o mato cerrado, o campo autêntico, a autêntica vida rústica. Para mim, Petrópolis é o ideal.
Amo devidamente o mato cerrado, quando o vejo celebrado em bons versos; e devidamente amo a autêntica vida rústica, quando a vejo descrita em livros de arte, como O sertão de Coelho Neto. Mas na vida prática, meus amigos, confesso que só amo a natureza civilizada, tratada com arte e carinho pela mão do homem. Certo, é agradável o cheiro da mata, como são agradáveis a frescura das grotas e a meia-escuridão dos recessos de bosque, emaranhados de cipós. Mas tudo isso é perigoso. No bosque há espinhos que dilaceram a face e as mãos, e cobras que mordem, e formigas que sem cerimônia sobem pelas pernas da gente, e, sobretudo, que pavor! certos bichinhos que não cheiram propriamente a ervas orvalhadas, nem a moitas de jasmins desabrochados... Para um homem civilizado, só há um lugar habitável : é o lugar onde se pode conservar a roupa limpa, os sapatos lustrosos e as mãos sem calos ; todos os outros lugares podem ser infinitamente belos, mas só podem servir de habitação a quem, possuindo uma alma simples, gosta de dispensar os cuidados do barbeiro, do alfaiate, da engomadeira e do engraxate, para aproximar o mais possível a sua vida da vida dos animais inferiores. Os homens querem-se na cidade, pisando paralelepípedos. Os coelhos, os veados, os porcos-do-mato, é que se querem na floresta, esmagando cobras com as patas.
No tocante a florestas, só amo as florestas como a da Tijuca -- de entradas planas e cuidadas, varridas duas vezes por semana, como se fossem corredores de casa, dando cômodo trânsito a carros; as outras, as virgens, as autênticas, não as disputo àqueles que, como Antônio Conselheiro, são variantes mais ou menos aproximadas do Calibã  shakespeariano.
Calibã  personagem da peça A tempestade, de Shakespeare. Encarnação da rudeza, da grosseria e da desordem, Calibã opõe-se a Ariel, espírito refinaado e sociável.
Assim, amo a vida civilizada encaixada na moldura rústica da natureza primitiva. Quero ver os troncos rugosos encontrando-se e torcendo-se, confundindo estreitamente no ar as copas altas, abrigando a algazarra dos ninhos e os amores dos pássaros ; quero ver as catadupas de águas bravias, franjando-se de espuma nas cristas das rochas; quero ver despenhadeiros e alcantis, rios e capoeirões; mas quero ver tudo isso sem incômodo, debruçado a uma janela, de dentro de uma sala em que haja poltronas, e livros, e tapetes, e copos de cristal ...
Por isso, prefiro Petrópolis! Quando cuidaria o antigo Córrego Seco, modesto e selvagem, ao ver chegar a primeira leva de colonos alemães, que um dia sobre as suas terras se levantariam palácios e rodariam carruagens de luxo? Quando os casais alemães,  nutridos a queijo fresco e a cerveja loura, entregues ao amor e ao trabalho, deram filhos e melhoramentos ao lugar -- logo o resto da gente pensou que devia ser deliciosa a vida, ali, naquela altura, sem miasmas, sem febre amarela.
E, logo, a corte de d. Pedro II começou a ir passar o verão naquele canto da Estrela -- patrimônio da Coroa: bem pífia Corte essa, sem fausto, sem arte, sem dinheiro... Mas, enfim, sempre era uma Corte: e a cidade de Pedro foi melhorando e tornando-se a habitação da moda, durante as asperezas do verão fluminense. Hoje, é aquele encanto ! A natureza selvagem está ali perto, ao alcance dos olhos e da mão : onde há folhagens mais verdes? onde mais vivos sóis desabrocham no céu? onde mais frescas águas brotam do solo? onde mais serenas manhãs se abrem, sob neblinas alvíssimas, como noivas sob véus de rendas fúlgidas? onde mais perfumes se desprendem das moitas? onde têm mais brilho as estrelas, por noites caladas e frias?
Ali tens tu, leitor amigo, as flores da mata... Se não as queres, aqui tens as camélias formosíssimas, filhas da civilização, primores nascidos e criados à custa de cuidados sem conta. Aqui tens tu a água leve que não custa vintém; se não a queres, aqui tens, nos hotéis, os vinhos finos que custam os olhos da cara...
Em torno de ti, tens o mistério e o sossego da serra : há por ali lugares que a planta do pé do homem ainda não profanou ; se és Antônio Conselheiro, embrenha-te por esses matagais. Mas se, como eu, preferes os lugares em que não há carrapichos e cobras, aqui tens as ruas calçadas; e os carros que te evitam a fadiga das caminhadas a pé (outro hábito de selvagem que não se dá bem com o meu temperamento); e as lojas de jóias, de bibelots, de modas, de perfumarias; e as cervejarias em que se toma uma cerveja loura como Diana e leve como uma nuvem; e o teatrinho Fluminense onde Dell'Acqua exibe os seus cenários fulgurantes e os seus atores de pão ; e o teatro da Floresta; e o da moda ; e os hotéis onde se dorme bem ; e as recepções onde os olhos da gente têm a inenarrável felicidade de admirar as mais belas mulheres do Rio; e os bailes, onde à claridade ofuscante das lâmpadas elétricas, revoluteiam colos nus; e o Casino-Hotel...
Salve, Petrópolis! pequeno e esplêndido trecho, asseado e suave, da civilização, encravado no vasto seio bruto da Natureza: aí, posso ouvir o barulho das rama rias e das cachoeiras, sem ter os sapatos sujos de lama e a pele picada de mosquitos; aí posso à vontade sentir que sou animal, sem precisar esquecer-me de que sou homem; ai posso respirar o mesmo ar que respiram as aves livres e os livres quadrúpedes, sem me privar da delícia de sorver um vermouth-coq-tail numa taça de baccarat, aí posso, enfim, reintegrar-me de quando em quando no seio da Mãe Criação, sem ter para isso de tirar a gravata e os punhos... Salve, Petrópolis fidalga! mansão do Bom Gosto, onde o ar é puro e a gente é bem-educada !
Por isso mesmo, Petrópolis, por isso mesmo que és fina, e bem-educada, e fidalga -- é que há muita gente que não gosta de ti : nós, em geral, no Brasil, entendemos que o reino da democracia é o culto da má-criação; e, além disso, estamos tão habituados a viver, ou no interior das confeitarias sujas, ou nas ruas imundas e fétidas, que falamos sempre mal do que é limpo e elegante.
Há quem odeie Petrópolis porque a julgue a capital do Snobismo e da Pose: santo Deus! pois se há gente que gosta de não se lavar, com medo de que se lhe ache ridículo o abuso do banho!...
Ainda há poucos dias, um jornal, falando do Casino-Hotel de Petrópolis -- essa casa que Echeveria e Lassale ali mantêm como urna verdadeira Escola de Bom-Tom e Chic -- dizia que aquilo era um antro de jogo e de jogadores... Pudera ! pois se aquela casa é excelente! se nela se dão festas a que concorre o que Petrópolis tem de mais notável! se ali os garçons não andam, como nas nossas confeitarias elegantes do Rio, sem paletot e com a camisa suja ! se ali se pode passar a noite com decência e conforto, conversando com gente que tomou chá em pequena ! se ali não se fala de política, nem de obscenidades, nem da vida alheia ! se ali crescem, se ali viçam, em plena força, essa delicada flor da civilização e essa frágil flor das Boas Maneiras, a cuja cultura, em geral, o brasileiro é tão estranho! -- como não se há de procurar desmoralizar a casa, que assim comete o alto crime de dar bons jantares, e concertos de música que não é a do Rio Nu, e bailes que não são carnavalescos, e festas de uma harmonia incomparável?
Ai! Amigos ! e que houvesse jogo! e que houvesse jogo! que haveria nisso de altamente condenável, de provocador das cóleras humanas e celestes, de destruidor dos alicerces da instituição? O jogo mau, o jogo pernicioso e perverso, que corrompe tudo, que chama a miséria e a prostituição, que avilta o caráter, faz odiar o trabalho e amar a ociosidade, é o joguinho barato, o joguiriho do meio da rua e da turma da batota, jogo em que se metem patrões e criados, patrões e criadas, velhos e crianças, jogo que aí está às escâncaras, na rua Nova do Ouvidor, e no Agave, e no Pantheon, e nos Belódromos, e nos Frontões, e nos Bookmakers, e nas charutarias, e nas vendas, e nas repartições públicas, fervendo, desvairado, brutal, com permissão da polícia, que se confessa impotente para matá-lo, e com a animação nossa que o anunciamos, que o apoiamos, que o protegemos! Tem graça, esta acusação de ser antro de jogo, atirada a uma casa que, como o Casino-Hotel, é o único reduto a que ainda se acolhe no Brasil a sociedade que se quer divertir com luxo, porque tem dinheiro para gastar, e pode gastá-lo como bem quiser! Tem graça! e é um belo sinal do tempo!
E que houvesse jogo, amigos! O jogo, entre pessoas que se conhecem, que se prezam e estimam, faz parte da educação : é uma coisa que se deve saber praticar, assim como se tem a obrigação de saber dançar, conversar e comer... Mas a acusação falsa é o pretexto... A verdadeira causa do motim é querer estragar o que está bem-feito! Aqui, há um prazer, estranho e mórbido, em sujar as paredes pintadas de novo, e em torcer as grades dos jardins, e até em quebrar os bancos de pedra do parque da Aclamação... Oh! oráculos divinos! quando chegará o dia em que nos teremos de convencer da necessidade da Cortesia e da Decência?
Salve, apesar de tudo, Petrópolis! que falem de ti, que esbravejem contra ti, à vontade! se até já tenho ouvido dizer que o teu clima não presta!... Salve, apesar de tudo, e prospera! e apura-te! e sê sempre um oásis de asseio e frescura neste vasto deserto de sujidade e calor !
E olha : - vê se, quanto antes, a burocracia se aborrece da pureza do teu ar, regressando à sua chata e abominável planície ! uma repartição de Estado em teu seio, com amanuenses, e contínuos, e escriturários, e pretendentes, e estampilhas, e paletós de alpaca, e papeladas, e reposteiros verdes e amarelos -- é como um caramujo gosmento no seio pálido de uma camélia...
Calma e linda cidade -- feita para as recatadas delícias das luas-de-mel, e para os comedidos flirts, e para o doce e bem-aventurado ócio, filho da Ventura, pai dos sonhos que embalam a alma! -- quem foi que teve essa desastrada idéia de te converter em capital de estado? ..
                                                                                          Fantasio
                                                                             Gazeta de Notícias  13/2/1897