terça-feira, 7 de maio de 2013

A Princesa, como ela era; o cronista, como ele não era



            Isabel Cristina de Bragança e Bourbon (depois unida por casamento a  Gastão de Orléans, conde d'Eu, e originando o nome Orléans e Bragança, exclusivo para seus descendentes), feita princesa Isabel do Brasil  -- retratada por lentes diferentes da ótica comum à historiografia oficial.
       Em O castelo de papel (ed. Rocco, 302 pgs), de Mary del Priore, a última princesa imperial e regente e a primeira senadora do país é mostrada em suas íntimas natureza atitudes e comportamentos, a relação com o conde d'Eu, sobretudo sua real postura pessoal com relação à escravatura e à abolição : quase nada ‘revolucionária’,não a figura progressista, abolicionista, mas uma mulher recatada, dedicada à jardinagem, à família, à religião, até com certo preconceito com relação aos escravos, “uma dona de casa, que se importava com regimes e com o conforto dos filhos".
     Mary é notável em relatos e retratos desse tipo: historiadora emérita – dedicada em especial a estudos sobre o Império brasileiro (autora, entre outras obras, de  A carne e o sangue: a Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos;  Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na História do BrasilCondessa de Barral, a paixão do Imperador ; O príncipe maldito ;  História do amor no Brasil ; História das mulheres no BrasilFestas e utopias no Brasil colonial) – escritora de largos recursos estilísticos – lastreados em sólido embasamento literário: mesmo suas obras historiográficas guardam nítido,e atraente, estilo descritivo e comentado digno das melhores narrativas literárias (inclusive publica agora sua  primeira ficção, A descoberta do Novo Mundo ) -- foi professora da USP e da PUC-Rio.
                                                                   __________________
 Em torno da literatura e elementos e ‘cousas’ literários (e bibliográficos, editoriais, etc) regozijo-me em manter com Mary -- de minhas mais amáveis e queridas, lúcidas e inteligentes, interlocutoras -- gratificantes diálogos (digitais, vale frisar), que muito me enriquecem.
Este novo livro propicia-me mais uma prazerosa oportunidade de diálogos com ela – e: entre Isabel e ... Machado de Assis.

Isabel, Mary, Machado [e eu]

Em meus estudos machadianos, especificamente nas crônicas identifico e mapeio referências de Machado de Assis a Isabel (quase nada  ao conde d’Eu; muitas e muitas, obviamente, ao imperador Pedro II ).
Uma apreciação acerca de referências a Isabel, à família imperial e ao imperador Pedro II  teria necessariamente de se constituir e desdobrar, como um pano de fundo mais amplo e abrangente, em torno da própria postura, e atitudes, de Machado com relação à Monarquia, ao regime monárquico, ao governo imperial – especialmente aqui examinados sob duas claves,ou crivos, temporais: os anos de 1864 e 1888 . De resto, vieses que se colocam essencialmente no amplo espectro da relação machadiana com a política.  
Como descrevi e enfatizei em meu estudo – a se tornar livro – “Machado de Assis, crônicas: a política, a história brasileira do século XIX”, foi ele ativo observador e intérprete, participante e mesmo atuante, como nenhum escritor de seu tempo,  no que se refere a fatos, temas e questões políticas de seu tempo.
Machado de Assis recebeu indevidamente, numa das mais equivocadas avaliações da literatura brasileira, a pecha de “despolitizado”, “apolítico”, “alheio às questões políticas e sociais de seu tempo”. Ao contrário, foi um lúcido ‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e das instituições do País: as crônicas  tratando de política,ou a ela se referindo – são 385, cerca de 52% do total das  738 publicadas por ele –  desmistificam taxativamente a injusta,indevida ‘chancela’.
Por meio de sua obra é possível observar a política brasileira da época através dos  olhar, lente e pena machadianos que se dedicaram a retratar, relatar, comentar, criticar ou parodiar, ironizar ou protestar, repudiar ou gracejar tanto os acontecimentos principais como os secundários, tanto os macro como os micro- eventos, tanto a história\vida pública quanto a história\vida privada –  conferindo a ambos a mesma importância e a mesma ‘grandeza’ nas linhas e entrelinhas de suas quase quatro centenas de crônicas tratando de fatos,homens e coisas da política, de que a ele pouco, muito pouco escapou. Seu testemunho croniquesco sobre a vida política do II Reinado e início da República, de  tão precioso e valioso , pode ser dado como indispensável para o conhecimento e interpretação do Brasil oitocentista.
Machado de Assis foi dado como um ‘monarquista liberal’, mas evocado como extremamente “respeitoso” ao imperador (“rei filósofo, de espírito superior, um homem probo, lhano, instruído, patriota” – em crônica de 01.10.1877, na Ilustração Brasileira), por extensão a toda família imperial.
O que não o impedia de, em diversas crônicas, tecer enfáticas, por vezes cáusticas, críticas a atos e decisões, políticas, administrativas, institucionais, econômicas, de Pedro II
Como p.ex. em maio 1863 , quando da decretação da dissolução da Câmara -- o imperador exercendo sua prerrogativa de “poder moderador” --, escrevendo na crônica de 15.05. em O Futuro 
       “Se me fosse dado escrever  uma crônica política, esta seria de todas as minhas crônicas a mais farta e a mais interessante. Com efeito, a situação a que pôs termo o decreto de 12 do corrente [1]marca, na história do Império, um dos mais graves e embaraçosos momentos; e a mais simples exposição do meu pensamento, em relação à gravidade do caso e ao alcance da medida, bastaria para encher o espaço de três crônicas.
       Os ingleses têm, entre outras manias, a mania de grandes e singulares apostas. Não menos ingleses foram muitos dos nossos políticos que, confiado cada qual na sua impressão ou na sua esperança, lançaram-se à aventura e ao azar da fortuna. Qual, apostava cem bilhetes da loteria afirmando a conservação da câmara temporária ; qual, punha a sua fortuna em jogo, se alguém a quisesse aceitar, afirmando a conservação do gabinete; e neste movimento escoaram-se os dias que mediaram entre a abertura do parlamento e a dissolução da Câmara.
       Os mais espertos, dos tais que vivem ... aux dépens de celui qui l' écoute, afirmavam, uns a dissolução, outros o adiamento, outros a queda dos ministros, isto com um ar de iniciados nos segredos de cima, que faria rir ao mais grave e sisudo deste mundo.
      O que é certo é que o ano de 1863 é, e há de ser fecundo em acontecimentos. Aguardemos o que vier, e deixemos a apreciação do decreto de 12 de maio, não sem registrá-lo como uma data de regeneração. (...)”
Ou antes, em janeiro 1859, no artigo “O Jornal e o Livro” no Correio Mercantil (10-12.01) – que a rigor embasa uma explícita postura ideológica relativa à Monarquia (no caso, contrária -- o que contrapõe ao desígnio contumaz de ter sido ele um ‘monarquista liberal’: liberal, sim, monarquista nem tanto....: o notável estudioso machadiano Jean-Michel Massa sustenta significar uma guinada radical, do “outrora convivente com a burguesia e elogioso de seu imperador agora predizendo a queda das realezas”[sic]):
   “[Graças ao jornalcompleta-se a emancipação da inteligência e começa a dos povos. O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica(...)”
Ainda para efeito de refletir quanto às relações de Machado com a Monarquia, importante notar, e anotar --  a par do escrito nesse  artigo  sua colaboração ao liberalJornal do Povo, de vida curta( apenas 5 edições), em 1862 – colaboração efêmera, como a própria existência  do jornal –  certamente por concordar com os perfil,linha e ideologia do jornal, cujo editorial do 1º.  número,   em 07.04, apregoava
       “O povo antes do rei! O direito antes do privilégio! A lei antes da autoridade! No sistema representativo só o povo delega poderes. Todos os poderes são responsáveis perante a nação. Não há poder permanente senão a soberania nacional
e sustentava no 2º. número,  em 12.04
         “O governo paternal do Brasil é uma árvore mancenilha do Oriente. Destrói o que se abriga à sua sombra”
 ontudo, há de se fazer observar o quanto Machado manteve com a República – e antes de sua implantação, com a ‘idéia’ da República – uma relação, via de regra, de crítico ‘sofrido e perplexo’: haja vista um contundente  comentário.“(...)eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou(...)”,a acidez de suas crônicas na série “A Semana”, na Gazeta de Notícias, de 1892 a 1900, quando sentia-se extremamente desalentado, desgostoso,em estado  da mais completa desilusão com os rumos da República e as endêmicas manifestações de um cenário de corrupção, inerente, para ele ao próprio regime republicano e seus projetos ‘modernizadores’.
Particularmente a Isabel dedicou várias manifestações de simpatia, a maioria das referências reportam-se ao ano de 1864 – de resto, ano de marcantes fatos nos cenários políticos e institucionais do país e particularmente relevante para Machado --  quando deram-se dois eventos importantes para ela – por extensão para o Império e para o país: seu aniversário de 18 anos e seu casamento, este em especial recebendo de Machado ‘cobertura’  em algumas crônicas, e – acredito que  desconhecidos,ou pouco conhecidos,até mesmo surpreendentes – dois poemas (na verdade, típicos ‘versos de circunstâncias’) dedicados às núpcias imperiais.
    ⌂ O ano de 1864 foi um período significativamente intenso de fatos de política interior e exterior para o Brasil – todos, sem exceção, em maior ou menor grau, com mais ou menos intensidade e contundência, registrados, retratados, comentados e interpretados por Machado nas  crônicas que publicou no período. Ocorreram significativas trocas de Gabinetes  -- primeiro, em janeiro, ao do conservador Marquês de Olinda sucedeu o do liberal Zacarias de Góis Vasconcelos,que durou apenas até agosto, sob forte oposição parlamentar fomentada por Saldanha Marinho -- diretor do Diário do Rio de Janeiro, onde Machado escrevia, inclusive tecendo  críticas e se opondo a  Zacarias em várias crônicas,também naquelas que publicava naImprensa Acadêmica ; depois, no final de agosto, para o também liberal  Francisco José Furtado,que durou até maio 1865 – deu-se o rumoroso caso ,na seara econômico-financeira, da falência da casa bancária Souto & Cia,que gerou pânico generalizado e inclusive crise política; ativaram-se as demarches para a célebre Questão Christie, que um anos antes puseram em confronto diplomático e político Brasil e Inglaterra; conflito da mesma natureza irrompido com o Uruguai em decorrência de uma guerra civil  eclodida em 1863 com graves  incidentes com brasileiros residentes; e por fim o aprisionamento, ordenado por Solano Lopez, do navio “Marquês de Olinda” e invasão do Mato Grosso, gestando os elementos  preliminares da Guerra do Paraguai, que se iniciaria em 1865 e geraria decisivas(porque.segundo historiadores, ‘acenderia o rastilho de pólvora que explodiria na implantação da República”) debilidades  política  e econômica do governo imperial.
Vale anotar que 1864  abrigou 25 crônicas de Machado tratando de política, dentro de um conjunto de 57 – basicamente, proporção semelhante à do cômputo geral.
     Para Machado, esse ano situava-se numa espécie de ‘epicentro’ de consciência e pensamento político entre o ápice do engajamento em 1862 -- sob a trajetória iniciada três ou quatro anos antes, ao se agrupar em torno dos portugueses e sobretudo do proscrito francês Charles Ribeyrolles, chegado ao Brasil em junho 1858, trocando “a lira [da produção poética,esta profusa,e da contística romântica dos primeiros anos de produção literária] pela pena de aço,sob o lema do ‘escrever era agir e lutar’”  – e o iniciar da ‘libertação literária’em 1867 – quando da decisão taxativa de dedicação primordial à literatura
      E o ano foi relevante também na seara literária de Machado – tendo como fato  primordial capital a marca-la a publicação de Crisálidas, sua primeira coletânea de poesia.
                                            
Nestes textos, eivados e regados de fartos elogios e enaltecimentos, louvores e saudações, vai se ver – por certo, outra ‘surpresa’ – um Machado essencialmente diferente  dos  estilo,  teor,timbre,tom e tipo que já imprimia a seus textos na imprensa : importante lembrar que em 1864 Machado fez da maioria de suas crônicas ,quer as publicadas na Semana Ilustrada, na Imprensa Acadêmica – de São Paulo – no Diário do Rio de Janeiro, nas quais inclusive o cunho político, de comentários muitos deles críticos sobre política, eram acentuados.
Aparece aqui um Machado, mais do que simpatizante do imperador e da família real, um ‘súdito do Império’,inclusive eivado de patriotismo e espírito de ‘cidadania’. A bem da verdade, patriotismo – um patriotismo com lastros ideológicos e políticos, mister frisar – Machado sempre expressara, em diversas ocasiões, motivos e meios: por exemplo, quando da Questão Christie, 1863(em  crônicas em O Futuro e no Diário do Rio de Janeiro e no poema “Hino Patriótico”,na Semana Ilustrada);  e especialmente quanto à Guerra do Paraguai, enfocada e comentada, em muitas crônicas,desde seus primórdios em 1864 e 1865 (no Diário do Rio de Janeiro) – e muito especificamente ,um atestado de ‘patrotismo ardente’, o poema “A cólera do Império”,1865 -- e no decorrer dos anos de 1866 a 1870 (naSemana Ilustrada).
Não se pode – faço observar de imediato – imputar ao Machado que se lê nas apreciações sobre Isabel, a família real, o casamento, etc  a pecha de ‘chapa branca’, por favor – como a de ‘alienação política’ que nele absurdamente  colaram ...
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 O casamento da princesa imperial era tido como questão política, “um objeto de alta política, um negócio de Estado" – e cerca de dois anos antes já era assunto corrente no noticiário, de registros prematuros na imprensa : Machado,em janeiro 1862,colaborador do Diário do Rio de Janeiro, com a série “Comentários da Semana”,inclusive de marcante teor político, alude  a artigos escritos por um cronista(que se assinava Scoevola) no Jornal do Commercio.
 7 de janeiro de 1862
DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO - Comentários da Semana[2]
(...)
 Parece que os arautos políticos da parte não oficial do Jornal do Commercio compreenderam bem.a situação, porque, desde então, nenhum mais apareceu no posto do costume. Um dia antes Scoevola havia começado uma série de artigos sobre o casamento da princesa imperial, prometendo discorrer para diante acerca da conveniência de diversos partidos de casamento, que se possam oferecer à herdeira da coroa brasileira. Até agora, nada.
Pois é pena ! Estava divertido com os seus protestos de queimar a mão, e com as mesuras repetidas que fazia diante do augusto assunto de que tratava. A mim, se me afigurou ver o cabeçalho de um Manual de civilidade cortesã.
Valha-os Deus ! Nisto primam eles, e à fé que não é mérito pequeno. Já não é pouco saber um homem como se há de haver nestas contingências e cortesias obrigadas. Pelo menos não se corre o risco daquele fidalgo da sociedade beata de D. João V, de que fala uma biografia-romance, o qual perdera muito no conceito dos seus por ter dado a toalha, em vez das galhetas, ao oficiante a quem servia de acólito.
Esperemos, entretanto, pelo final do discurso de Scoevola, que, como o de Tarquínio, na comédia portuguesa - Roma exige e tem de ser litografado. (...)                                                              M.A
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Em meados de 1864, Isabel completando 18 anos, por incrível que pareça ainda não se sabia ao certo  quem eram os noivos (!) – o que era ‘normal’, corriqueiro em se tratando de casamentos reais, como de praxe arranjados e obedientes a conveniências e necessidades entre as dinastias, as casas reais, as famílias da nobreza.
No caso de Isabel, há uma história – bastante ilustrativa de sua personalidade e determinadas atitudes ( a corroborar, de certo modo, observações  de  Mary del Priore quanto a nuances que apontam uma Isabel diferente da imagem comum e historicamente, até pessoalmente,a ela conferida – inclusive no que a mostra como  alguém “não tão generoso assim...").
Os noivos escolhidos pelos parentes europeus da família real brasileira para Isabel e sua irmão Leopoldina eram respectivamente o príncipe Auguste de Saxe Coburgo Gotha,de 19 anos, e seu primo o príncipe Luis Felipe Maria Fernando Gastão d’Orleans, o conde d’Eu,de 22 anos ; chegados ao Brasil em agosto e apresentados às princesas, foram simplesmente ‘trocados’ como nubentes : de imediato, Isabel externou a preferência,e o reclamou para si, pelo conde d’Eu – e tudo acabou por atender às suas exigências... 
As expectativas, injunções e preparativos para o casamento ocupavam lugar e tempo marcantes tanto na imprensa – e especificamente em crônicas de Machado – como na própria opinião pública.
 1 de maio de 1864
imprensa  acadêmica - Correspondência da Corte [3]
(...)
Já que falo em missão diplomática tocarei em outra de que se fala aqui muito baixinho. Dizem que dentro de pouco tempo estará nomeado embaixador para ir à Europa contratar o casamento da Princesa Imperial. Acrescenta-se que o escolhido será da família dos Coburg-Gotha. Sua Alteza completa dezoito em julho, o que me faz crer que não é verdadeira a parte do boato de que antes dos dezoito anos estará Sua Alteza casada.  Mas, como disse, isto é apenas boato, e como tal o menciono aqui.
(...)

17 de julho  de 1864
imprensa  acadêmica - Correspondência da Imprensa Acadêmica
(...)
Nada se sabe por ora do casamento de nossas augustas princesas. Sua Alteza Dona Leopoldina completa depois de amanhã 17 anos. A princesa Imperial está a fazer 18. Os  casamentos parece que se realizarão, com efeito, em outubro, mas quanto aos augustos noivos reina o mais absoluto silêncio. Todavia, corre o boato de que o Duque de Penthièvre e um Hohenzollern são os escolhidos. Nada se sabe.
(...)                                                                                                                            Sileno
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1 de agosto de 1864
diário   do rio de janeiro – Ao Acaso[4]
 A semana que findou teve duas festas: uma festa da dinastia, outra da indústria; nacionais ambas; ambas celebradas na quinta do Imperador.
Sua Alteza Imperial completou 18 anos; esta circunstância e a do seu próximo casamento deram ao dia 29 de julho maior importância ainda.
Sua Alteza está moça; chegou à idade em que lhe é preciso observar os acontecimentos, estudar maduramente as instituições, os partidos e os homens; enfim, completar como que praticamente a educação política necessária à elevada posição a que deve assumir mais tarde.
Se a esta circunstância ligarmos outra, a do próximo casamento de Sua Alteza, ter-se-á compreendido a máxima importância do dia 29.
Esta importância nada perde de si diante das instituições que nos regem - apesar de já ir longe o tempo em que o príncipe de Ligne, dizendo-lhe a imperatriz Catarina que ia consultar o seu gabinete, respondia: -- O gabinete de S. Petersburgo, bem sei o que é, vai de uma fonte à outra, e da testa à nuca de Vossa Majestade.
Se hoje não é assim, nem por isso o critério do imperante deixa de tomar parte no desenvolvimento e na prática das instituições.
(...)                                                                                                                          M.A.
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25 de setembro  de 1864
imprensa  acadêmica - Correspondência da Imprensa Acadêmica
(...)
Estão oficialmente pedidas as nossas princesas. Casa S.A. Imperial D. Isabel com o conde d'Eu, e S.A. D. Leopoldina, com o duque de Saxe. O casamento efetua-se a 15 ou 18 de outubro.
Os dois príncipes têm visitado tudo; são infatigáveis, o que vai perfeitamente com o espírito ativo de Sua Majestade o Imperador. O conde d'Eu, sobretudo, tem merecido as simpatias gerais. Supõe-se que D. Fernando vira até cá.
É por ora o que há de mais importante. Se ocorrer alguma coisa antes de partir o vapor ,  aqui lhe direi.
                                                                                                                             Sileno
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27 de setembro  de 1864
diário   do rio de janeiro - Ao Acaso
(...)
Os leitores já sabem que no dia 15 de outubro efetuar-se-á o casamento de S.A. Imperial com o sr. Conde d’Eu. A imprensa já comemorou a escolha do noivo e escreveu palavras de cordial respeito e firme esperança no consórcio que se vai efetuar. A ambição dos povos livres, neste caso, é que nos seus tronos se assentem príncipes honrados e ilustrados, capazes de compreender toda a vantagem que se pode tirar da aliança da realeza com o povo[6]. Assim o país recebe alegremente a notícia deste acontecimento.(...)                                                                                                                                                                                                                                M.A.
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Logo em seguida, esmerou-se em enaltecimentos das festas em si e em ‘derramados’ louvores e elogios à noiva e à “alegria íntima, natural, espontânea, que o povo tributa à primeira família da nação”...

17 de outubro  de 1864
diário do rio de janeiro - Ao Acaso
(...)
O Rio de Janeiro está em festas – festas realizadas anteontem e festas adiadas para 24 e 25. O casamento da herdeira da coroa é o assunto do momento. Um céu puro e um sol esplêndido  presidiram no dia 15 a este acontecimento nacional. A natureza dava a mão aos homens; o céu comungava com a terra. Não descreverei nem a festa oficial, nem a festa pública. Quem não assistiu a primeira leu já a relação dela nos andares superiores dos jornais; na segunda todos tomaram parte – mais ou menos – todos viram o que se fez, em arcos, coretos, pavilhões, iluminações, espetáculos, aclamações e mil outras coisas. E sobretudo  ninguém deixou de ver e sentir a melhor festa,que é a festa da alegria íntima, natural, espontânea, que o povo tributa à primeira família da nação. Uma das coisas que fez mais efeito nesta solenidade foi a extrema simplicidade com que trajava a noiva imperial. É impossível desconhecer o delicado pensamento que a este fato presidiu: na idade e na condição de Sua Alteza as suas graças naturais, as virtudes do coração e o amor deste país, são o seu melhor diadema e as suas jóias mais custosas.
(...)                                                                                                                        M.A.
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Não apenas em crônicas  Machado exibiu – espontânea ou convenientemente, assim especulo (talvez incentive reflexões e debates) – seu apreço pela princesa e um inusitado júbilo pelo casamento, não obstante suas importância e  repercussão serem  inerentes às  monarquias hereditárias, pelo que significava de continuidade da dinastia imperial. No próprio dia 15 de outubro, na Semana Ilustrada – da qual era também colaborador (e o foi até 1873,quando o jornal foi extinto – sucedido pela Ilustração Brazileira,do mesmo Henrique Fleuiss,onde Machado escreveu de 1876 a 1878 ) – publicou um poema (pode-se dizer que quase inédito em livro) : sob o mesmo espírito de enaltecimento às núpcias imperiais, exemplo típico de ‘versinho de circunstância’, particularmente convencional e despojado de maiores qualidades poéticas, tanto que assinados por pseudônimo.
            Estâncias nupciais
                 I
Que riso este ar encerra ?
Que canto? Que troféu ?
Que diz o céu à terra ?
Que diz a terra ao céu ?
                II
Do seio das florestas
Que aroma sobe ao ar ?
E que oblações são estas
Que a terra envia ao mar ?
               III
A peregrina Alteza,
A rosa matinal,
O sonho de pureza
Da mente imperial.
               IV
É noiva. A mão de esposa
Ao feliz noivo dá;
Era de amor ditosa
Esta hora lhe abrirá.
                V
Almas de luz unidas
Na pura candidez
O amor – de duas vidas
Uma só vida fez.
             VI
E a filha predileta
Do paternal amor,
A doce,excelsa neta
Do excelso Fundador,
            VII
Aumenta a nossa glória
No sólio imperial,
E a fúlgida memória
Da honra nacional.
                                                     Y
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Ainda sobre os esponsais, foi apresentada na mesma semana, no Teatro Lírico, uma cantata em homenagem aos nubentes, com música do maestro Besanzoni e versos de Machado – que a Semana  Ilustrada publicou na edição de 25 outubro :
Poema de simples, singelo,terno  patriotismo, -- não mais que isso.  
       
      Núpcias
 Do seio da espessura,
Ó virgem do Brasil,
Ergue radiante e pura
A fronte juvenil.

Tece com as mãos formosas
À noiva imperial
De lírios e de rosas
A coroa nupcial.

Flor desta jovem terra,
Em seu profundo amor,
Como um penhor encerra
Cândida,excelsa flor.

Vivo,fulgente emblema
Das glórias do porvir,
Que o régio diadema
Um dia hás de cingir;

Salve! Os destinos novos,
Novos, futuros bens,
Querida destes povos,
Em tuas mãos os tens.

Num juramento  unidas
Ante o sagrado altar,
As almas, como as vidas,
O céu veio aliar.

É vínculo precioso
Que o prende agora a ti.
Esposa, eis teu esposo;
Alegra-te e sorri.

Abram-se à nova história
As páginas leais,
Onde se escreve a glória
Da pátria e dos teus pais.

E a mão que não consome
Memórias tão louçãs,
De dois fez um só nome:
Bragança e Orleans !
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O nascimento do primeiro filho do casal em fevereiro 1878 não poderia deixar de ser comentado por Machado. Um varão (anteriormente Isabel perdera uma menina),por fim : viria a ser o príncipe d. Luís d’Orléans e Bragança , que escreveria a coletânea de contosSous la Croix du Sud ,em 1912 – sem edição brasileira, hoje, obra rara, de alto valor  bibliográfico e comercial -- e que iria concorrer em 1915,sem sucesso, a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.

fevereiro de 1878
ilustração  brazileira – História de Trinta Dias[7]
(...)
Um novo príncipe enche de regozijo a família brasileira, cujo augusto chefe reúne às mais elevadas virtudes cívicas as mais austeras virtudes domésticas.
Sua Alteza a Princesa Imperial sente dobrarem-se-lhe inefáveis alegrias de mãe.
Ainda bem !
 Digna filha da virtuosa Imperatriz, saberá dar a seus amados filhos as lições que recebeu, e que a exalçam de nobilíssimas. virtudes ; lições iguais às que lhe transmitirá o ilustre príncipe consorte, educado na escola do velho rei que deu à França 18 anos de paz, de prosperidade e de glória.
                                                                                                                 Manasses
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A Isabel, sempre que o imperador estivesse ausente do país – e cada vez mais freqüentes eram suas viagens à Europa – cabia,como (interina) Regente a responsabilidade pela “Fala do Trono”,tradicional evento de reabertura das câmaras (isto é, Câmara dos Deputados e Senado): a cerimônia,e o discurso da princesa(elaborado  por Ferreira Viana), no dia 3 maio 1888 foi absolutamente especial  -- nela Isabel anunciou oficialmente a Abolição, que seria promulgada em lei no dia 13.
   ⌂ Também no que tange à escravatura, e do mesmo modo, absurdamente, evocou-se a  tese da ‘alienação’ machadiana. Mister  portanto esclarecer de vez : Machado nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravidão – fosse como  funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual  emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos , fosse em sua obra ficcional e não-ficcional. Fez da escravatura objeto crítico –  por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada – em dezenas de crônicas – notadamente aquelas da série “Bons Dias!”,na Gazeta de Notícias, em 1888-89,na qual inclusive  valeu-se de um ‘histórico’  anonimato -- em  poemas,  peças teatrais,  sobretudo contos, além de torná-la pano de fundo de alguns  romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880..
    Por outro lado, sustentava que a Abolição não iria representar em essência uma ‘revolução’ nem a liberdade  mas apenas a transferência de um regime opressivo para outro,  para um mercado de trabalho e uma convivência social sem perspectivas (em sua visão, aliás, o mesmo se dava com a  República, para  ele uma mera mudança de ‘rótulo’, a oligarquia continuando a governar...). Nesse ‘terreno’, mais do que nunca manejava ironias finas, como lhe era peculiar, para tratar criticamente de temas graves e delicados—nos  quais  suas posições o como de resto na política em geral oferecem  nuances e elementos passíveis de interpretações equivocadas, ou no mínimo precipitadas.
    O biênio 1888-89, sabemos,  foi  crucial para o Império,a Monarquia brasileiros,  para a história nacional – e  para Machado.Às complexidade e gravidade do momento histórico que o Brasil vivenciava, em plena efervescência dos movimentos abolicionista e republicano, gerando evidentemente preocupações e tensões gerais, não poderia Machado ficar alheio : inclusive por estar consciente da necessidade de,a seu modo e em sua seara literária, participar mais diretamente dos acontecimentos levou-o a interromper,até abruptamente, a (bem sucedida) série “Gazeta de Holanda”,1886-88 (crônicas em forma de poemas , os “versiprosa” segundo expressão cunhada por ele - antecipando em muitos anos a Carlos Drummond de Andrade...), iniciando, na mesma Gazeta de Notícias, a série “Bons Dias!,que publicou de abril 1888  a  agosto 1889, toda ela assinada por “Boas Noites” -– o que se constituiu em ‘histórico’ disfarce machadiano (como lhe era típico, aliás), pois somente identificado pelo dedicado estudioso José Galante de Sousa em 1952 (!) -- com crônicas de contornos e proporções mais densos , mais acentuadamente dramáticas, refletoras da comoção política irrefreável que tomava conta do país, carregadas de densidade,contundência e incisiva crítica ,  nas  quais  como nunca antes expressa opiniões políticas de tais forma, modo e grau,,inclusive com apreciações sobre a escravidão,a Monarquia e a iminente República.
4 de maio de 1888
gazeta    de notícias –  Bons Dias !
(...)
Entretanto, se alguma vez  precisei de estar de perfeita saúde, é agora, por várias razões. Citarei duas:
A primeira é a abertura das câmaras. Realmente, deve ser solene. O discurso da Princesa, o anúncio da lei de Abolição, as outras reformas, se as há, tudo excita curiosidade geral, e naturalmente pede uma saúde de ferro. O meu plano era simples; metia-me na casaca. E ia para o Senado arranjar um lugar, donde visse a cerimônia, deputações, recepção, discurso Infelizmente, não posso; o médico não quer, diz-me que, por esses tempos úmidos, é arriscado sair de casa; fico.
A segunda razão da saúde que eu desejava ter agora, prende com a primeira. Já o leitor adivinhou o que é. Não se pode conversar nada, assim mais encobertamente, que ele não perceba logo e não descubra. É isso mesmo; é a política do Ceará. Era outro plano meu; entrava pelo Senado, e ia ter com o senador cearense Castro Carreira,  e dizia-lhe mais ou menos isto:
— Saberá V. Ex.a que eu não entendo patavina dos partidos do Ceará.
(...)
— Há entre o céu e a terra mais acumulações do que sonha a vossa vã filosofia...
— Pode ser, mas isto ainda não me explica a razão desta mistura ou troca de grupos, parecendo melhor que se fundissem de uma vez com os antigos adversários. Não lhe parece?
— O que me parece, é que a princesa vem chegando.
Corríamos a janela; víramos que não, continuávamos o diálogo, a entrevia, à maneira americana, para trazer os meus leitores informados das cousas e pessoas. O meu interlocutor, vendo que não era a promessa, olhava para mim, esperando. Pouco ou nenhum interesse no olhar; mas é ditado velho, que quem vê cara não vê corações. Certo fastio crescente. Princípio de desconfiança de que eu sou mandado pelo diabo. Gesto vago de cruzes...— Há os Rodrigues, os Paulas, os Aquirases, os Ibiapas; há os...
— Agora creio que é a princesa. Estas trombetas. . . É ela mesma adeus, sou da deputação... Apareça aqui pelo Senado... No Senado, não há dúvidas...
(...)                                                                                                          BOAS NOITES
______________

No mesmo ano, em maio Isabel ainda era a Regente, pela ausência de Pedro II, e nessa condição  era a figura proeminente na cerimônia de missa campal celebrada no Campo de São Cristóvão,a 17 maio, em ação de graças pela Abolição, com a presença de muitas personalidades políticas,inclusive Cotegipe, até março presidente do Conselho, forçado a se demitir (sucedido pelo Gabinete de João Alfredo), antiabolicionista que era,  face à inevitabilidade de decretação da libertação total  de escravos.
Na crônica alusiva ao evento, Machado constrói uma clara paródia do Evangelho segundo João ( Cap 1,vrs. 1 : “No princípio era o Verbo,e o Verbo estava com Deus) -- era ele profundo conhecedor da Bíblia, aliás -- devidamente adaptado para o cenário político do Império. – e então aparece,ou reaparece, o cronista vigoroso,contundente,lúcido intérprete da realidade do país.

20-21 de maio de 1888
imprensa   fluminense –  Bons Dias ![8]
BONS DIAS!
Algumas pessoas pediram-me a tradução do Evangelho que se leu na grande missa campal do dia 17. Estes meus escritos não admitem traduções, menos ainda serviços particulares; são palestras com os leitores e especialmente com os leitores que não têm que fazer. Não obstante, em vista do momento, e por exceção, darei aqui o evangelho, que é assim:
1. No princípio era Cotegipe , e Cotegipe estava com a Regente, e Cotegipe era a Regente.
2. Nele estava a vida, com ele viviam a Câmara e o Senado.
(...)           
10. Passados meses, aconteceu que o espírito da Regente veio pairar sobre a cabeça de João Alfredo, e Cotegipe deixou o poder executivo e o poder executivo passou a João Alfredo.
(...)
24. E, tendo a Regente abençoado a João e seus discípulos, foram estes para as câmaras, onde apresentaram o projeto de lei, que, depois de algumas palavras duras e outras cálidas de entusiasmo, foi aprovado no meio de flores e aclamações.
25. A Regente, que esperava a lei nova, assinou com sua mão delicada e superna.
26. E toda a terra onde chegava a palavra da Regente, de João Alfredo e dos seus discípulos, levantou brados de contentamento, e os próprios senhores de escravos a ouviam com obediência.
(...)                                                                                                                    BOAS NOITES.
______________
 Em 28  setembro desse (histórico) ano,  Isabel foi condecorada com a Rosa de Ouro, comenda oferecida pelo papa Leão XIII, por ter como regente concedido liberdade aos escravos, numa cerimônia das mais concorridas de então que constituiu-se em grande evento político com a presença de toda a família imperial, a alta nobreza,muitos deputados e senadores, diplomatas, autoridades eclesiásticas,e até mesmo republicanos como José do Patrocínio, vereador no Rio de Janeiro – o que parecia [sic] fortalecer a Monarquia naquele momento.

6 de outubro de 1888
gazeta   de notícias –  Bons Dias !
(...)
E vosmecês, como vão da sua tosse? Provavelmente não perderam o pique-nique (tenho lido esta palavra escrita ora pik-nik, ora pic-nic ; depois de alguma meditação, determinei-me a escrevê-la como na própria língua dela), nem sessões de câmaras, nem a entrega da Rosa de Ouro a Sua Alteza Imperial. E eu de cama, gemendo, sabendo das coisas pelas folhas. Foi por elas que soube da interpelação do sr. Zama, a qual deu lugar à Gazeta de Notícias proferir uma blasfêmia. Dizia ela que direito de interpelação degenera aqui, e chama-lhe válvula. (...)
BOAS NOITES.
________________
 Como um tipo de corolário a estas considerações – e fechar o exercício de ‘diálogo’ : do mesmo modo que Mary del Priore mostra e revela uma Isabel  algo diferente do retrato historiográfico oficial, como uma ‘mulher comum’, esposa dedicada e apaixonada, dona de casa e mãe, também apresenta-se – qual interface – um Machado de Assis distinto do cronista incisivo, do comentarista crítico, do contundente intérprete da realidade política,institucional,social, etc brasileira do século XIX : um esmerado louvador da família monárquica, simpatizante explícito da princesa e do casal imperial; um Machado formal,protocolar nas crônicas (exceto naquela de 20-21.05.1888), um patriótico poeta piegas.

Em suma: a princesa, como (realmente) era; o cronista, como (essencialmente) não era.

.


[1] Decreto n. 3092, que dissolvia a Câmara dos Deputados e convocava “desde já outra”; acoplado ao de n. 3093, da mesma data, que convocava “para o dia 1 de janeiro do ano próximo futuro a nova Assembléia Geral Legislativa”.
[2] Com esse título, a série publicada por Machado, parte com pseudônimo Gil, parte com assinatura M.A, no Diário do Rio de Janeiro perdurou de novembro 1861 até maio 1862.   
[3] A Imprensa Acadêmica, cujo titulo completo era Revista da Imprensa Acadêmica, jornal “comercial, agrícola, noticioso e literário” dos estudantes da Academia de Direito de São Paulo, fundada em 1864 (circulou até 1871), publicação de acentuadissimos cunhos  literário e político, com ideologia de inspiração liberal : Machado  colaborou com crônicas e artigos de abril a outubro desse ano,e em 1868. [compõe obra que estou a preparar, preferencialmente para se editar e publicar em São Paulo].
[4] Com esse título, a série publicada por Machado, toda com assinatura M.A, no Diário do Rio de Janeiro, perdurou de de junho 1864 a maio 1865..   
[5] O cronista, aqui, procura expressar a ainda existência de  dinastias, embora não houvessem mais monarquias absolutas.
   Contudo, vale neste particular lembrar  o que Machado escrevera naquele artigo “O Jornal e o Livro”, de 1858, no Correio Mercantil.
[6] A expressão adquire seu significado exato sob o prisma do ‘monarquismo liberal’: o conde d’Eu era tido como de tendência liberal e se ligaria com o tempo a políticos liberais – a corroborar plenamente  Mary del Priore que o descreve como “muito mais ativo, buscando mais protagonismo”.
[7] Machado iniciara, na Ilustração Brasileira, a publicação de crônicas a cada duas semanas  com a série “História de Quinze Dias”, que foi de julho 1876 a  janeiro 1878, todas com o pseudônimo Manassés; a partir de fevereiro 1878, a periodicidade passou a mensal, alterado  o título da série para “História de Trinta Dias”,encerrando a colaboração ao jornal em abril 1878.  
[8] Apenas nesta crônica, e nesta única vez, Machado colaborou com a Imprensa Fluminense, jornal  de Niterói,estado do Rio de Janeiro, que defendia a Abolição : não se sabe exatamente os motivos e as circunstâncias para que levasse uma crônica da série, que era da Gazeta de Notícias, para esse jornal.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

LUTO

a livraria IMPRESSÕES acaba de fechar suas lojas -- a do Centro da cidade e a de Itaipava -- e encerrar suas atividades. 
assim, Petrópolis -- que enfatizo em estudo e tematizo aqui na denominação,conteúdo e approach deste blog -- historicamente uma "cidade literária" [certo que ao longo do século XX e  neste limiar do XXI foi gradativamente reduzindo esse status : por absoluta e gritante inépcia,incúria e desprezo do Poder Público, da sociedade civil municipal, de agentes culturais e educacionais, etc] -- permanece lastimavelmente reduzida,restringida,empobrecida a apenas 1(uma!) livraria, a Nobel.
idealizada e criada por Humberto Medrado, professor e pensador,um verdadeiro paladino cultural, a IMPRESSÕES  teve seus primeiros anos de existência sob magnífica aura e ações efetivas em prol do Livro, da Leitura, da circulação do conhecimento literário (palestras,debates, etc) -- para em seguida,tendo Humberto se afastado por força de suas atividades acadêmicas, caído em sequente decadência até chegar a esse horrível ponto de agora.[e pior,nos locais -- Centro e Itaipava -- não serão instaladas livrarias...]

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Fernando Py e Petrópolis [ Quarteirão Brasileiro - II]


"Cidadão Petropolitano Honorário", membro da Academia Petropolitana de Letras e da Academia Petropolitana de Poesia:  honrosas referências  que não poderiam deixar de ser conferidas a . Fernando Py (Rio de Janeiro, 1935), poeta,  crítico literário, tradutor – é dele  a versão  considerada definitiva, publicada no Brasil na  década de 1990,  da obra do grande romancista  francês Marcel Proust, Em busca do tempo perdido.(mas traduziu também os franceses Honoré de Balzac e Marguerite Duras ,o norte-americano  Saul Bellow, o ensaísta inglês John Gledson).
Como enfatiza Gerson Valle, da Academia Petropolitana de Letras, reportando ao livro do poeta e crítico Pedro Lyra, A poesia da geração 60 – em que caracteriza esta por seu sincretismo. – o poeta que é  exemplo da passagem de uma a outra geração  é  exatamente  Fernando Py, que possui, em parte, “certo sincretismo” da geração 60 e guarda algum formalismo típico da geração 45, não só com sonetos e sextinas, e até com uma sisudez emblemática dos simbolistas ou parnasianos mesmo nos versos livres”
Py é um ‘poeta da trajetória’, a passagem do tempo como a própria essência da vida, e de sua criação poética:  se no primeiro livro,de 1962, A aurora de vidro., a  infância (a “aurora”)  para ele uma idade de ouro, luminosa, clara, em oposição ao livro de mais de três décadas depois, Sol nenhum, onde a maturidade se equivale à escuridão da noite, à morte. -- a trajetória como o inverso do que acontece com o “homem civilizado, que vai da inocência, de um estado nebuloso de consciência, para um estado de lucidez que tem constituído a grandeza e, também, a miséria humana”.
A poética de Py segue um percurso, no qual  sente-se saturado da luz da ciência, e ruma  em busca de outras luzes, “do outro lado da esfera esplendente ”.-- luzes que se vislumbram  em sua obra, entre elas uma  “luz sobre o texto”, no livro A construção e a crise, ,de 1969, onde o poeta social vale-se da  metapoesia para  considerar o momento impróprio(eram os ‘anos de chumbo’ do regime político) à poesia.; ou  uma “luz sobre a amada”: a lírica amorosa em Vozes do corpo  e em Dezoito sextinas para mulheres de outrora, ambos de 1981; atingindo, na antológica  Antiuniverso, 1994 , a “luz meridiana”,  epopéia moderna “fazendo um passeio cósmico” na qual o  poeta incorpora-se com o estudioso de astronomia, chegando a um “universo paralelo da poesia”; e finalmente   a  “luz sobre o próximo” em Sentimento da morte, 2003.. E assim , Fernando Py tece sua poesia com  elementos   que celebram sobretudo a vida --  a infância, a nostalgia da adolescência, o encontro com a maturidade, a velhice crepuscular  -- por meio de inventários e evocações do passado mas também com  reflexões do presente e alusões futuristas.
poesia :  Aurora de vidro (1962); A construção e a crise (1969);  Quatro poetas modernos(1976);  Vozes do corpo (1981);  Dezoito sextinas para mulheres de outrora (1981);  Antiuniverso (1994);  Sol  nenhum (1998) ;  Antologia poética :40 anos de poesia: 1959-1999 (2000); Sentimento da morte & Poemas anteriores (2003);  Setenta poemas escolhidos (2005) . prosa (ensaio e crítica):  Carlos Drummond de Andrade: poesia (1998); Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (2002);  Chão da crítica (1984);  Uma poesia dialógica: nove resenhas da obra de Pedro Lyra (2003);  O poeta Coelho Vaz (2004).;
________________ 

O  Verbo

o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma
é acerba

o verbo
se averba

Indagações
           a Leonardo Fróes

De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.

De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?

Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?

Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.

Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?
Em que páramos finais
existe nossa redenção?

Encontro

A antiga namorada
ressurgindo na rua
você enxovalhado
cabelo e barba por fazer
vida de sacrifício
meio se esconde
e ela passa
ainda jovem
talvez mais bonita
mais mulher
bem tratada
vestido caro
você recorda
o primeiro beijo
aquela paixão eterna
o baile de formatura
a profissão abandonada
vai levando nos olhos
o tipo mignon
que outros braços
e beijos
farão vibrar
recorda
poemas que lhe fez
o livro de estréia
tão pobre e tão longe
tão dela impregnado

sente-se velho
acabado
saudade da juventude
mas foi a sua opção
os filhos de outra mulher
a literatura
vida tão avessa
assume
e na volta da esquina
desaparece
a antiga namorada.

Cave Canem

Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES

Canto de muro
               a Mário Quintana

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranqüila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

Morte íntima
             a Eliane Zagury

Quatro sílabas viajam
no rumo de ninguém.
Quatro caladas mágoas
já sem uso em palavras.
Língua cortada, o eco
regressando à origem
que se pressente oblíqua
anterior à linguagem.

A idéia segue a sílaba
em seu perecimento
mantendo-se intranqüila
durante algum momento.
Sejam dias ou séculos
igual será o lamento
desse ruído - som morto
cavado na laringe.

Persista embora o símbolo
constante do alfabeto
os signos não reunidos
jamais na mesma sílaba
lerão palavra idêntica
a essas duas minúsculas
outrora pronunciadas
carreando emoções mágicas.

A morte dessas sílabas
completa a do indivíduo.

Confissão
        a  lvan Junqueira

Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.

Sextina 2
      a Cyro Pimentel

A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.

O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.

De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.

Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.

Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.

Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.

Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.

Fui eu

Fui eu esse menino que me espia  
- melancólico olhar, sereno rosto,  
postura fixa e o todo bem composto -  
no retrato que o tempo desafia.  
Fui eu na minha infância fugidia  
de prazeres ingênuos, e o desgosto  
de sentir tão efêmera a alegria  
bem depressa trocada em seu oposto.  

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa  
e tudo altera nem sequer deixou  
um grão de infância feito esmola escassa.  
Fui eu: e na figura só ficou  
o olhar desenganado, na fumaça  
em que a criança inteira se mudou. 

O beco
        a Carlos Drummond de Andrade

Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.

Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem 
seres e coisas que vejo?

Quem derrama nesse recanto do universo
o sinal de vida, a marca indelével
da matéria organizada?

O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?

O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?

Após o banho, nua

Após o banho, nua
ainda, o corpo húmido
ao meu encontro, visão,
relembro, cálido êxtase,
os seios entrevistos
no decote frouxo, agora, nua,
toalha molhando-se, ressurgem
após o banho,
fremindo, suave embalo, avidez
de língua e mãos, nua, vens,
perfume, sulcos na pele,
ansiada espera, curvas, a entrega
ao meu olhar, bocas, rosa
túmida, pétala, sucção, espuma,
resplandeces para mim, nua,
após o banho.

O esquizofrênico 

No seu delírio vai compondo os gestos
diante da platéia inexistente;
ele próprio é a platéia, mas não sente
do espetáculo mais que os pobres restos
que a memória lhe acende nos esgares
da fisionomia descomposta.

No seu delírio a fala, sem resposta,
se resolve em grunhidos singulares,
num discurso arbitrário de fonemas
reduzidos à simples expressão
de sons primevos que de sempre estão
revelando carências, e as extremas 
ruínas de seu cérebro em pedaços.

Os gestos multiplicam-se em algemas
e a platéia se cala, membros lassos.

Duplo

Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia

e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais maté4ria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...

Quarenta anos
             a Carlos Nejar

Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e ao riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.

 Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.

Tango                                                                    

Um tango me persegue desde a infância                 
no canto, no piano, na memória                               
e se me impõe à voz, timbrando vário                     
são prolongar em mim a sua essência
nos dedos de meu pai sobre o teclado.

Não somente: transporta desde longo
tempo a escrita do pai, letra de tango
no papel sempre então visto e relido.

Um tango me persegue: sua marca 
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se acerca.

         E letra e pai e som, tudo afinal
         gira ao compasso do tango fatal.

Nevoeiro                                                               
            a meu irmão                                                           

O verso agoniza                                                      
na folha.                                                                 .          

Luz  contínua.
verdevermelha                                                                                                       

A noite apodrece                                                      
em música.                                                             .

Todos na sala                                                         
esperam.                                                                 .

A aurora há-de vir:                                                   
sem consolo.                                                            .  

Onde se (des)faz o amor                                            
antigo?                                                                    

Tudo foge. Tudo é                                                     .                                                                   desierto.

Fim de festa
         a Emil de Castro

corpo  desfeito  de  suor
inertes móveis desdenhados
bolo de puro enfeite sem cuidar
migalhas xadrezando a toalha suja
música  breve  sugerindo
ritmos  de  sono
                      morte 
                               lentamente
na pele o sal
                   úmidos   membros   lassos
agitação  caindo
                   noite  sempre
lâmina  de  angústia  sob  as  pálpebras
               m e d o
medo  intenso  e  mais  ninguém

Ensaio  sobre  o  fim
            a José Edson Gomes

Contempla este edifício de cimento
e fezes.

Contempla-o: segredos abrem-se a teus olhos
no ranger dos gonzos, na ferrugem
amarga do metal mordido.

Desfere a vista contra estas colunas,
estas paredes, pesquisa os alicerces.

0 material que neles se empregou
é sangue e ossos, humo desprezível,
suor de peitos e braços, pêlos rudes
impregnados de cólera e onde assoma
a lágrima impotente da miséria.

Desfere tua vista, puro raio,
vento noturno desfolhando telhas,
sobre o sujo edifício onde a ambição
ergueu-se em desafio ao céu tranquilo.

Do teu conciso olhar
nascerão novos tiros mais adultos
nascerão juventudes reduzindo
o edifício opressor a lodo e cinza,
envolvendo estruturas, certos homens
que em si o mal fabricam, sêde e fome,
este mundo em pedaços que se esfuma
ao ligeiro calor de olhos impávidos
enquanto pela noite, rosa e luz,
já distingo o futuro, companheiro
— a nova construção sem privilégios.