terça-feira, 13 de novembro de 2012

Fernando Py e Petrópolis [ Quarteirão Brasileiro - II]


"Cidadão Petropolitano Honorário", membro da Academia Petropolitana de Letras e da Academia Petropolitana de Poesia:  honrosas referências  que não poderiam deixar de ser conferidas a . Fernando Py (Rio de Janeiro, 1935), poeta,  crítico literário, tradutor – é dele  a versão  considerada definitiva, publicada no Brasil na  década de 1990,  da obra do grande romancista  francês Marcel Proust, Em busca do tempo perdido.(mas traduziu também os franceses Honoré de Balzac e Marguerite Duras ,o norte-americano  Saul Bellow, o ensaísta inglês John Gledson).
Como enfatiza Gerson Valle, da Academia Petropolitana de Letras, reportando ao livro do poeta e crítico Pedro Lyra, A poesia da geração 60 – em que caracteriza esta por seu sincretismo. – o poeta que é  exemplo da passagem de uma a outra geração  é  exatamente  Fernando Py, que possui, em parte, “certo sincretismo” da geração 60 e guarda algum formalismo típico da geração 45, não só com sonetos e sextinas, e até com uma sisudez emblemática dos simbolistas ou parnasianos mesmo nos versos livres”
Py é um ‘poeta da trajetória’, a passagem do tempo como a própria essência da vida, e de sua criação poética:  se no primeiro livro,de 1962, A aurora de vidro., a  infância (a “aurora”)  para ele uma idade de ouro, luminosa, clara, em oposição ao livro de mais de três décadas depois, Sol nenhum, onde a maturidade se equivale à escuridão da noite, à morte. -- a trajetória como o inverso do que acontece com o “homem civilizado, que vai da inocência, de um estado nebuloso de consciência, para um estado de lucidez que tem constituído a grandeza e, também, a miséria humana”.
A poética de Py segue um percurso, no qual  sente-se saturado da luz da ciência, e ruma  em busca de outras luzes, “do outro lado da esfera esplendente ”.-- luzes que se vislumbram  em sua obra, entre elas uma  “luz sobre o texto”, no livro A construção e a crise, ,de 1969, onde o poeta social vale-se da  metapoesia para  considerar o momento impróprio(eram os ‘anos de chumbo’ do regime político) à poesia.; ou  uma “luz sobre a amada”: a lírica amorosa em Vozes do corpo  e em Dezoito sextinas para mulheres de outrora, ambos de 1981; atingindo, na antológica  Antiuniverso, 1994 , a “luz meridiana”,  epopéia moderna “fazendo um passeio cósmico” na qual o  poeta incorpora-se com o estudioso de astronomia, chegando a um “universo paralelo da poesia”; e finalmente   a  “luz sobre o próximo” em Sentimento da morte, 2003.. E assim , Fernando Py tece sua poesia com  elementos   que celebram sobretudo a vida --  a infância, a nostalgia da adolescência, o encontro com a maturidade, a velhice crepuscular  -- por meio de inventários e evocações do passado mas também com  reflexões do presente e alusões futuristas.
poesia :  Aurora de vidro (1962); A construção e a crise (1969);  Quatro poetas modernos(1976);  Vozes do corpo (1981);  Dezoito sextinas para mulheres de outrora (1981);  Antiuniverso (1994);  Sol  nenhum (1998) ;  Antologia poética :40 anos de poesia: 1959-1999 (2000); Sentimento da morte & Poemas anteriores (2003);  Setenta poemas escolhidos (2005) . prosa (ensaio e crítica):  Carlos Drummond de Andrade: poesia (1998); Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (2002);  Chão da crítica (1984);  Uma poesia dialógica: nove resenhas da obra de Pedro Lyra (2003);  O poeta Coelho Vaz (2004).;
________________ 

O  Verbo

o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma
é acerba

o verbo
se averba

Indagações
           a Leonardo Fróes

De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.

De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?

Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?

Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.

Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?
Em que páramos finais
existe nossa redenção?

Encontro

A antiga namorada
ressurgindo na rua
você enxovalhado
cabelo e barba por fazer
vida de sacrifício
meio se esconde
e ela passa
ainda jovem
talvez mais bonita
mais mulher
bem tratada
vestido caro
você recorda
o primeiro beijo
aquela paixão eterna
o baile de formatura
a profissão abandonada
vai levando nos olhos
o tipo mignon
que outros braços
e beijos
farão vibrar
recorda
poemas que lhe fez
o livro de estréia
tão pobre e tão longe
tão dela impregnado

sente-se velho
acabado
saudade da juventude
mas foi a sua opção
os filhos de outra mulher
a literatura
vida tão avessa
assume
e na volta da esquina
desaparece
a antiga namorada.

Cave Canem

Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES

Canto de muro
               a Mário Quintana

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranqüila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

Morte íntima
             a Eliane Zagury

Quatro sílabas viajam
no rumo de ninguém.
Quatro caladas mágoas
já sem uso em palavras.
Língua cortada, o eco
regressando à origem
que se pressente oblíqua
anterior à linguagem.

A idéia segue a sílaba
em seu perecimento
mantendo-se intranqüila
durante algum momento.
Sejam dias ou séculos
igual será o lamento
desse ruído - som morto
cavado na laringe.

Persista embora o símbolo
constante do alfabeto
os signos não reunidos
jamais na mesma sílaba
lerão palavra idêntica
a essas duas minúsculas
outrora pronunciadas
carreando emoções mágicas.

A morte dessas sílabas
completa a do indivíduo.

Confissão
        a  lvan Junqueira

Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.

Sextina 2
      a Cyro Pimentel

A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.

O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.

De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.

Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.

Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.

Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.

Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.

Fui eu

Fui eu esse menino que me espia  
- melancólico olhar, sereno rosto,  
postura fixa e o todo bem composto -  
no retrato que o tempo desafia.  
Fui eu na minha infância fugidia  
de prazeres ingênuos, e o desgosto  
de sentir tão efêmera a alegria  
bem depressa trocada em seu oposto.  

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa  
e tudo altera nem sequer deixou  
um grão de infância feito esmola escassa.  
Fui eu: e na figura só ficou  
o olhar desenganado, na fumaça  
em que a criança inteira se mudou. 

O beco
        a Carlos Drummond de Andrade

Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.

Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem 
seres e coisas que vejo?

Quem derrama nesse recanto do universo
o sinal de vida, a marca indelével
da matéria organizada?

O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?

O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?

Após o banho, nua

Após o banho, nua
ainda, o corpo húmido
ao meu encontro, visão,
relembro, cálido êxtase,
os seios entrevistos
no decote frouxo, agora, nua,
toalha molhando-se, ressurgem
após o banho,
fremindo, suave embalo, avidez
de língua e mãos, nua, vens,
perfume, sulcos na pele,
ansiada espera, curvas, a entrega
ao meu olhar, bocas, rosa
túmida, pétala, sucção, espuma,
resplandeces para mim, nua,
após o banho.

O esquizofrênico 

No seu delírio vai compondo os gestos
diante da platéia inexistente;
ele próprio é a platéia, mas não sente
do espetáculo mais que os pobres restos
que a memória lhe acende nos esgares
da fisionomia descomposta.

No seu delírio a fala, sem resposta,
se resolve em grunhidos singulares,
num discurso arbitrário de fonemas
reduzidos à simples expressão
de sons primevos que de sempre estão
revelando carências, e as extremas 
ruínas de seu cérebro em pedaços.

Os gestos multiplicam-se em algemas
e a platéia se cala, membros lassos.

Duplo

Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia

e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais maté4ria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...

Quarenta anos
             a Carlos Nejar

Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e ao riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.

 Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.

Tango                                                                    

Um tango me persegue desde a infância                 
no canto, no piano, na memória                               
e se me impõe à voz, timbrando vário                     
são prolongar em mim a sua essência
nos dedos de meu pai sobre o teclado.

Não somente: transporta desde longo
tempo a escrita do pai, letra de tango
no papel sempre então visto e relido.

Um tango me persegue: sua marca 
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se acerca.

         E letra e pai e som, tudo afinal
         gira ao compasso do tango fatal.

Nevoeiro                                                               
            a meu irmão                                                           

O verso agoniza                                                      
na folha.                                                                 .          

Luz  contínua.
verdevermelha                                                                                                       

A noite apodrece                                                      
em música.                                                             .

Todos na sala                                                         
esperam.                                                                 .

A aurora há-de vir:                                                   
sem consolo.                                                            .  

Onde se (des)faz o amor                                            
antigo?                                                                    

Tudo foge. Tudo é                                                     .                                                                   desierto.

Fim de festa
         a Emil de Castro

corpo  desfeito  de  suor
inertes móveis desdenhados
bolo de puro enfeite sem cuidar
migalhas xadrezando a toalha suja
música  breve  sugerindo
ritmos  de  sono
                      morte 
                               lentamente
na pele o sal
                   úmidos   membros   lassos
agitação  caindo
                   noite  sempre
lâmina  de  angústia  sob  as  pálpebras
               m e d o
medo  intenso  e  mais  ninguém

Ensaio  sobre  o  fim
            a José Edson Gomes

Contempla este edifício de cimento
e fezes.

Contempla-o: segredos abrem-se a teus olhos
no ranger dos gonzos, na ferrugem
amarga do metal mordido.

Desfere a vista contra estas colunas,
estas paredes, pesquisa os alicerces.

0 material que neles se empregou
é sangue e ossos, humo desprezível,
suor de peitos e braços, pêlos rudes
impregnados de cólera e onde assoma
a lágrima impotente da miséria.

Desfere tua vista, puro raio,
vento noturno desfolhando telhas,
sobre o sujo edifício onde a ambição
ergueu-se em desafio ao céu tranquilo.

Do teu conciso olhar
nascerão novos tiros mais adultos
nascerão juventudes reduzindo
o edifício opressor a lodo e cinza,
envolvendo estruturas, certos homens
que em si o mal fabricam, sêde e fome,
este mundo em pedaços que se esfuma
ao ligeiro calor de olhos impávidos
enquanto pela noite, rosa e luz,
já distingo o futuro, companheiro
— a nova construção sem privilégios.







Dante Milano e Petrópolis [Quarteirão Brasileiro - I]


o bairro Quarteirão Brasileiro, em Petrópolis, na verdade poderia se denominar “Quarteirão do Poeta Brasileiro” – pois nele morou Dante Milano, que lá faleceu ; e nele reside, desde 1967, e até hoje, Fernando Py.
quase que lado em lado, em duas belas casas repletas de livros,poesia,literatura (no caso de Milano, também esculturas, outra das expressões – ocultas -- de seu talento ) ,e sobretudo  um modus de produzir arte do mais fino quilate.
                                                                  _______________________
                                                                             [ Dante Milano, por Portinari

Dante Milano (Rio de Janeiro,1899- Petrópolis,1991),considerado por Drummond "um poeta de extraordinária qualidade",mas acrescentando “que não tem a mínima popularidade. Se você perguntar a um estudante quem é Dante Milano, ele não sabe.; se perguntar quais são os melhores poetas brasileiros, ele não inclui Dante Milano. A popularidade então não tem a menor importância” , é quase clandestino na literatura brasileira : poucos o conhecem, pouco se escreve sobre ele – talvez por causa de sua própria natureza, avesso ao "rumor de falsa glória", que preconizava "só o silêncio é musical"( convidado e incentivado a candidatar-se à Academia Brasileira de Letras, jamais aceitou)..Segundo o poeta e crítico Ivan Junqueira, “Dante Milano cultiva uma poética do pensamento emocionado, como o fizeram os chamados ‘poetas metafísicos’ ingleses do século XVII, o que não significa que sua expressão haja renunciado à emoção. Quem nele sente, porém, é o pensamento (...)” Publicou seu primeiro e único livro, Poesias, somente aos 49 anos, em 1948 :  sua poética não abriga expansões de lirismo – há emoção, mas o sentimento parece refreado pela rédea do pensamento lógico. Lírica de pensamento por excelência, a obra poética milaniana apresenta, como temas centrais, a vida, sua pujança  vis a vis com sua fugacidade : o amor  para  Milano não é o “amor vulgar dos homens”, e sim “a coisa mais só,mais funda, mais infinita”,  o amor milaniano é um amor sem objeto, não dirigido a uma determinada mulher, a amizade  sendo  tão  vívida e relevante quanto o amor.
Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, souberam compreender e apreender o significado dessa poética, que influiu, direta e indiretamente, nos rumos trilhados pela poesia brasileira nos últimos 50 anos,.Dante Milano foi, ainda que  à revelia de si mesmo, um dos grandes nomes da poesia brasileira do século XX.
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Descobrimento da poesia

Quero escrever sem pensar.
Que um verso consolador
Venha vindo impressentido
Como o princípio do amor.

Quero escrever sem saber,
Sem saber o que dizer,
Quero escrever uma coisa
Que não se possa entender,

Mas que tenha um ar de graça,
De pureza, de inocência,
De doçura na desgraça,
De descanso na inconsciência.

Sinto que a arte já me cansa
E só me resta a esperança
De me esquecer do que sou
E tornar a ser criança.

Vida

A vida
Fingida
Me chama
Me beija
Me foge
Me engana

Eu amo
Eu sofro
Eu fujo
Eu volto
Eu choro
Depois
Me revolto

Eu ando
Eu paro
Eu penso
Eu esqueço.

A partida

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.

Saudade do tempo

Saudade do tempo
Do tempo passado,
O tempo feliz
Que não volta mais.

Deus queira que um dia
Eu encontre ainda
Aquela inocência
Feliz sem saber.

Mas hoje que eu sei
De toda a verdade
Já não acredito
Na felicidade,

E quando eu morrer
Então outra vez
Pode ser que eu seja
Feliz sem saber.

A busca

Amor é a coisa mais só,
Mais funda, mais infinita.

Não o amor vulgar dos homens,
Sujo de sangue, de terra,
Amor sujo que dá nojo.

Não este cheiro de sangue,
Gosto de boca e de dor,
Gosto de terra, de carne,·
Amor sujo que dá nojo.

Amor, amor sem objeto,
Que anda à procura do amor.

Gruta

No fim do mundo
Há uma gruta,
Casa de pedra,
Cama no chão
De terra fresca,
Dormir na terra.
Deus me dê sonhos ...
O corpo quieto
Na terra fresca
Na doce gruta.

Divertimento

Acariciar a água de um rio
E sentir-lhe o estremecimento
Da pele, o fundo calafrio.
Eu distraído mas atento
Pensando .. , em quê? Sério, sorrio...
Oh secreto divertimento.

A mão desenhando um afago,
Traçando arabescos que invento,
Carícias no ventre do lago,
Círculos...círculos... em lento
Gesto, na água onde escrevo e apago ...
Oh absorto divertimento.

Seus cabelos com seus segredos
Em minhas mãos; e os acalento
Alisando os crespos folhedos,
O que toma o olhar sonolento.
Seus cabelos entre meus dedos...
Oh sombrio divertimento.

À amiga

Amiga sempre respeitada,
Amizade nunca manchada

Por algum intento banal,
Amor alvar, paixão sensual, .

Nós dois vigiando, fiéis amigos,
As palavras e seus perigos, .

Os gestos e seus entusiasmos,
As emoções e seus espasmos,

Pondo bem alto a nossa estima
E a gentileza que a sublima.

Quando alguém me chamar dizendo:
"A tua amiga está morrendol"

Eu irei postar-me a teu lado
E ao ver teu rosto inanimado,

No instante em que nada direi,
Eu que não rezo, hei de rezar,

Eu que não choro, vou chorar,
Eu que não amo, te amarei!

Ao tempo

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

Glória morta

Tanto rumor de falsa glória,
Só o silêncio é musical. Só o silêncio,
A grave solidão individual,
O exílio em si mesmo,
O sonho que não está em parte alguma.
De tão lúcido, sinto-me irreal.

Imagem

Urna coisa branca,
Eis o meu desejo.
Urna coisa branca
De carne, de luz,

Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,
Uma coisa branca.
Doce e profunda,

Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo,

Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,
Urna coisa branca
Para me encostar
E afundar o rosto.
Talvez um seio,
Talvez um ventre,
Talvez um braço,

Onde repousar.
Eis o meu desejo,
Uma coisa branca
Bem junto de mim,

Para me sumir,
Para me esquecer,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.

Paisagem

Talvez um fauno de expressão selvagem
Atormentado de uma dor lasciva
Por um aroma que passou na aragem,
Uma ninfa cor de água fugitiva.

Mais do que na memória evocativa
Esses seres existem na paisagem.
Algum fauno de outrora ainda se esgueira
Entre sombras e troncos, à procura

De uma nudez, e olha, tateia, cheira
Um vestígio de carne, sonho e alma...
Que desejos cruéis, quanta tortura
Nesta paisagem luminosa e calma.

Separação

Onde andarás sem mim nessas ruas enormes?
Quem te acompanha? Quem contigo ri?
Sob as mesmas cobertas com quem dorme
Quem te ama senão eu? Quem pensa em ti?

Vagas sem ter aonde ir e sem saber
O que fazer, ou sem prazer nenhum
Em mãos alheias como um bem comum
A outro te entregas sem lhe pertencer.

Estou pensando em ti...
Pensar é estar sozinho...

Elegia a Lígia

Lígia, teu nome de elegia
Te dá ao corpo moço um ar antigo
E cria em meu ouvido lento ritmo
Que me arrasta o absorto espírito
Para o verso e sua inútil tortura.

 Torso de ânfora esguia!
Só o que amou deveras um quadro, um vaso, um objeto precioso,
Pode sentir o relevo suave do teu ventre,
Corpo de mulher,
Forma antiga e novíssima.

Perdoa aos poetas que te desnudam, te divinizam, te prostituem.
Em meus versos inteira te possuo.
Que importa a fêmea que se nega?
Transformada em poema,
Amo-te ainda mais!
Ajoelho agarrado a teus joelhos,
Não com palavras de fé
Mas impudente e irreverente
Profanando mas adorando
A tua imagem desfigurada.

Poema do falso amor

O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro

É nula. O falso amor é verdadeiro
E o verdadeiro falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?

Se o verdadeiro amor pode ser falso
E o falso ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso

Ou crer que é verdadeiro todo amor.
Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!

Salmo perdido

Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.

Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.

O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.
Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Vinicius de Moraes e Petrópolis


Foi em sua residência petropolitana,  no anexo da casa do Barão de Mauá, que o poeta Vinícius de Moraes (Rio de Janeiro, 1913 -- Rio de Janeiro, 1980) junto com  compositor Carlos Lira, compôs a comédia musical  "Pobre Menina Rica" --  escrita em 1963, conta a  história do “forte amor” entre o Mendigo Poeta e a Pobre Menina Rica, retratando os dois lados da sociedade carioca dos anos 1960, com todo o seu glamour e suas contradições sociais.
O “poetinha”, como era (até internacionalmente) conhecido passou parte de sua vida em Petrópolis, onde por exemplo ,neste mesmo ano de criação da peça, compôs 

Medo de amar

O céu está parado, não conta nenhum segredo
A estrada está parada, não leva a nenhum lugar
A areia do tempo escorre de entre meus dedos
        Ai que medo de amar!

O sol põe em relevo todas as coisas que não pensam
Entre elas e eu, que imenso abismo secular...
As pessoas passam, não ouvem os gritos do meu silêncio
        Ai que medo de amar!

Uma mulher me olha, em seu olhar há tanto enlevo
Tanta promessa de amor, tanto carinho para dar
Eu me ponho a soluçar por dentro, meu rosto está seco
Ai que medo de amar!

Dão-me uma rosa, aspiro fundo em seu recesso
E parto a cantar canções, sou um patético jogral
Mas viver me dói tanto! e eu hesito, estremeço...
        Ai que medo de amar!

E assim me encontro: entro em crepúsculo, entardeço
Sou como a última sombra se estendendo sobre o mar
Ah, amor, meu tormento!... como por ti padeço...
        Ai que medo de amar!
                                   (Petrópolis, 02.1963)

de resto, poema  absolutamente  condizente com a ´temática inerente a toda a obra  de Vinicius – de múltiplos talentos : diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor .Vindo de um misticismo de fundo religioso para uma poesia nitidamente sensorial e sensual que depois se muda em versos marcados por um profundo sentimento social, a obra de Vinicius tem como constante um lirismo de sentimento e leveza  mas simultaneamente de grande força e densidade, sob um timbre de modernidade  peculiar no panorama literário brasileiro.
Essencialmente lírico, notabilizado pelo sonetos  que falam sobretudo a linguagem do amor, Vinicius de Moraes produziu  em verso e em prosa um rico acervo de  obras ,em 65 anos de criação artística de alta qualidade :  O caminho para a distância (1933) ; Forma e exegese (1935); Ariana, a mulher (1936) ; Novos poemas (1938) ; Cinco elegias (1943); Poemas, sonetos e baladas (1946); Pátria minha (1949); Antologia poética (1954); Livro de sonetos (1957);  Novos poemas- II (1959) ; Para viver um grande amor --crônicas e poemas (1962) ;  O encontro do cotidiano (1968);  A Arca de Noé; poemas infantis (1970);  Poesia completa e Prosa (1998)





































Manuel Bandeira e Petrópolis


Inexoráveis que são, a importância e influência de Manuel Bandeira (Recife,1886- Rio de Janeiro,1968) na literatura brasileira  gerou,quer na poesia quer na prosa , até mesmo um denominado  "ritmo bandeiriano", não apenas pelas forma e estilo de sua escrita --- simples e direto, mas lírico e sensorial --  também pela  temática –  de timbre universal, mas com foco no cotidiano. .
Em Bandeira, poemas (como “Poética”, parte da obra Libertinagem)  se constituem verdadeiros   manifestos da poesia moderna  --  incorporada e expressada ,em 1922, com o célebre poema  “Os sapos.”,  lido na  Semana de Arte Moderna de 1922, sem nela comparecer porém,e mais substancialmente  no livro Poesias,1924. Paralelamente, sua poética conjuga sua história pessoal e o conflito estilístico vivido pelos poetas de sua época,uma espécie de ‘hesitação’ entre o júbilo e a dor ,entre  alegria e saudades, entre prazer e melancolia, em  diversas dimensões figurativas, permeadas de  expressões de sentimento e evocações do imaginário – assim é, por exemplo, no célebre "Vou-me  embora pra Pasárgada",

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

-- .bem como uma  nostálgica rememoração  da infância, da vida de rua, do mundo cotidiano das provincianas cidades brasileiras do início do século. – caso explícito de sua  explicitamente amorosa relação com Petrópolis (onde passou  dois verões),
     “Sou natural do Recife, mas na verdade nasci para a vida consciente foi em Petrópolis , pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas reminiscências. Procurei fixá-las no poema Infância:
                Corrida de ciclistas
                 só me lembro de um bambual
                debruçado no rio.
                Três anos?
                Foi em Petrópolis."

e em

Noite morta
             Petrópolis, 1921

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.

Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite ...
(Não desta noite, mas de outra maior)

Sua vasta  e eclética obra comporta composições poéticas rígidas, sonetos em rimas ricas e métrica perfeita, na mesma  proporção em que se encontram trovas e  o rondó.
poesia: A cinza das horas (1917); Carnaval (1919); Poesias (1924);Libertinagem (1930);Estrela da manhã (1936);Poesias escolhidas (1937); Poemas traduzidos(1945); Opus 10 (1952);Cinquenta poemas escolhidos pelo Autor (1955); Poesia e prosa completa (1958); Alumbramentos (1960; Estrela da  tarde (1960); Estrela a vida inteira (1966);prosa:  Crônicas da Província do Brasil(1936); Guia de Ouro Preto(1938);Noções de história das literaturas(1940); Autoria das Cartas Chilenas(1940);  Apresentação da poesia brasileira (1946);  Literatura hispano-americana (1949);  Gonçalves Dias, biografia (1952);  Itinerário de Pasárgada(1954);  De poetas e de poesia (1954);  A flauta de papel (1957);  Prosa (1958);  Andorinha, andorinha (1966);  Colóquio unilateralmente sentimental (1968)


sábado, 27 de outubro de 2012

Raul de Leoni e Petrópolis


Nascido (1895)  e falecido(1926)  em Petrópolis,  Raul de Leoni  foi  poeta singular cuja obra tem resistido a qualquer tentativa de enquadramento, sua poesia detendo elementos  simbolistas  ao mesmo tempo  com características de neoparnasianismo. Leoni é considerado ,e enaltecido, como um dos maiores sonestistas  brasileiros, criador de poemas  de notáveis  sonoridade e ritmo, de métricas perfeitas, repletos de metáforas e de concepções filosóficas, harmonia da unidade de pensamento, considerados dos mais perfeitos em idéia, filosofia, e essência das temáticas.
Nele, o pensamento  filosófico antecede ao literário, as nuances psicológicas sobrepõem-se ao lirismo, as reflexões prevalecem sobre o descritivo meramente estético.
Luz mediterrânea, seu único livro de poemas, publicado em 1922, obteve de imediato (apesar de sair justamente no ano de deflagração do  Modernismo) grande sucesso junto ao público e é uma das obras poéticas  mais lidas e aplaudidas da literatura brasileira :desta obra, estão aqui os poemas a seguir.
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Pórtico


Alma de origem ática, pagã,
Nascida sob aquele firmamento
Que azulou as divinas epopéias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento
E a serena elegância das idéias...

Há no meu ser crepúsculos e auroras,
Todas as seleções do gênio ariano,
E a minha sombra amável e macia
Passa na fuga universal das horas,
Colhendo as flores do destino humano
Nos jardins atenienses da Ironia...

Meu pensamento livre, que se achega
De ideologias claras e espontâneas,
É uma suavíssima cidade grega,
Cuja memória
É uma visão esplêndida na história
Das civilizações mediterrâneas.

Cidade da Ironia e da Beleza,
Fica na dobra azul de um golfo pensativo,
Entre cintas de praias cristalinas,
Rasgando iluminuras de colinas,
Com a graça ornamental de um cromo vivo:
Banham-na antigas águas delirantes,
Azuis, caleidoscópicas, amenas,
Onde se espelha, em refrações distantes,

O vulto panorâmico de Atenas...

Entre os deuses e Sócrates assoma
E envolve na amplitude do seu gênio
Toda a grandeza grega a que remonto;
Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,
Das cidades ilustres do Tirreno
Ao mistério das ilhas do Helesponto...

Cidade de virtudes indulgentes,
Filha da Natureza e da Razão,
— Já eivada da luxúria oriental, —
Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,
Confia na verdade da Ilusão
E vive na volúpia e na sabedoria,
Brincando com as idéias e com as formas...

Revendo-se num século submerso.
Meu pensamento, sempre muito humano,
É uma cidade grega decadente,
Do tempo de Luciano,
Que, gloriosa e serena,
Sorrindo da palavra nazarena,
Foi desaparecendo lentamente,
No mais suave crepúsculo das coisas...

Argila

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

Ironia!

Ironia! Ironia!
Minha consolação! Minha filosofia!
Imponderável máscara discreta
Dessa infinita dúvida secreta,
Que é a tragédia recôndita do ser!
Muita gente não te há de compreender
E dirá que és renúncia e covardia!
Ironia! Ironia!
És a minha atitude comovida:
O amor-próprio do Espírito, sorrindo!
O pudor da Razão diante da Vida!

Platônico

As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.

Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.

Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,

Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.

História antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...



Legenda dos dias

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;
E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

Canção de todos

Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!

Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:

A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...

Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,
Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.

Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.

A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das coisas
Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...

Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina

Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:

Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.

Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.

Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.

Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas

Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.

Artista

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

Fia na primavera, entre as amoras.
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...

Serenidade

Feriram-te, alma simples e iludida.
Sobre os teus lábios dóceis a desgraça
Aos poucos esvaziou a sua taça
E sofreste sem trégua e sem guarida.

Entretanto, à surpresa de quem passa,
Ainda e sempre, conservas para a Vida
A flor de um idealismo, a ingênua graça
De uma grande inocência distraída.

A concha azul envolta na cilada
Das algas más, ferida entre os rochedos,
Rolou nas convulsões do mar profundo;
Mas inda assim, poluída e atormentada,
Ocultando puríssimos segredos,
Guarda o sonho das pérolas no fundo.

Felicidade

Sombra do nosso Sonho ousado e vão!
De infinitas imagens irradias
E, na dança da tua projeção,
Quanto mais cresces, mais te distancias...
A Alma te vê à luz da posição
Em que fica entre as cousas e entre os dias:
És sombra e, refletindo-te, varias,
Como todas as sombras, pelo chão...
O Homem não te atingiu na vida instável
Porque te embaraçou na filigrana
De um ideal metafísico e divino;
E te busca na selva impraticável,
Ó Bela Adormecida da alma humana!
Trevo de quatro folhas do Destino!...

Basta saberes que és feliz, e então
Já o serás na verdade muito menos:
Na árvore amarga da Meditação,
A sombra é triste e os frutos têm venenos.
Se és feliz e o não sabes, tens na mão
O maior bem entre os mais bens terrenos
E chegaste à suprema aspiração,
Que deslumbra os filósofos serenos.
Felicidade... Sombra que só vejo,
Longe do Pensamento e do Desejo,
Surdinando harmonias e sorrindo,
Nessa tranqüilidade distraída,
Que as almas simples sentem pela Vida,
Sem mesmo perceber que estão sentindo...

Prudência

Não aprofundes nunca, nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.
Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas raízes...
Trata-as assim, como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranqüilas.
Lembra-te dessas flores venenosas!
As abelhas cortejam de passagem,
Mas não ousam prová-las nem feri-las...

E o poeta falou

Afinal, tudo que há de mais nobre e, mais puro
Neste mundo de sombras e aparências
Fui eu quem revelou ou concebeu ..

Fui a primeira luz neste planeta obscuro!
Fui a suprema voz de todas as consciências
Fui o mais alto intérprete de Deus!

Dei alma à Natureza indiferente.
Inteligência às coisas, sentimentos
As forças cegas e automáticas do Cosmos ! ...

Acompanhei e dirigi os povos
Na sua eterna migração para o Poente;
Levantei os primeiros monumentos

E os primeiros impérios milenários:
Teci as grandes lendas tutelares.
Despertei na memória das criaturas
A sua antiga tradição divina.
Criando as religiões,  as fábulas, os mitos
Para iludir a dor universal:
Abri os horizontes infinitos:
Bebi o néctar das primeiras taças;
Plasmei os altos símbolos humanos.
Sutilizei o instinto e imaginei o amor;
Fui a força ideal das civilizações !
O gênio transfigurador da História !
O espírito anônimo dos séculos
E. harmonioso. profético. profundo.
Passei humanizando as coisas pelo mundo.
Para divinizar os homens sobre a Terra !

Exortação

Sê na Vida a expressão límpida e exata
Do teu temperamento, homem prudente;
Corno a árvore espontânea que retrata
Todas as qualidades da semente !

O que te infelicita é sempre a ingrata
Aspiração de uma alma diferente,
É meditares tua forma inata,
Querendo transformá-la, de repente !

Deixa-te ser ! ... e vive distraído
Do enigma eterno sobre que repousas,
Sem nunca interpretar o seu sentido !
 
E terás, de harmonia com tua alma,
Essa felicidade ingênua e calma,
Que é a tendência recôndita das coisas !

Egocentrismo

Tudo que te disserem sobre 'a Vida,
Sobre o destino humano, que flutua,
Ouve e medita bem, mas continua
Com a mesma alma liberta e distraída !

Interpreta a existência com a medida
Do teu Ser ! (a verdade é uma obra tua!)
Porque em cada alma o Mundo se insinua,
Nurna nova Ilusão desconhecida.

Vai pelos próprios passos, num assomo
De quem procura por si próprio o fundo
Da eterna sensação que as coisas têm !

Sabedoria

Tu que vives e passas, sem saber
O que é a vida nem porque é, que ignoras
Todos os fins e que, pensando, choras
Sobre o mistério do teu próprio Ser.

Não sofras mais à espera das auroras
Da suprema verdade a aparecer:
A verdade das coisas é o prazer
Que elas nos possam dar à flor das horas ...

Essa outra que desejas, se ela existe,
Deve ser muito fria e quase triste,
Sem a graça encantada da incerteza ...

Vê que a Vida afinal - sombras, vaidades –
É bela, é louca e bela, e que a beleza
É a mais generosa das Verdades ...

Sei de tudo

Sei de tudo o que existe pelo mundo.
A forma, o modo, o espírito e os destinos.
Sei da vida das almas e aprofundo
O mistério dos seres pequeninos.
Sei da ciência do Espaço, sei o fundo
Da terra e os grandes mundos submarinos,
Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo
Que há entre os passos humanos e os divinos.
Sei de todas as cousas, a teoria
Do Universo e as longínquas perspectivas
Que emergem da expressão das cousas vivas.
Sei de tudo e — oh! tristíssima ironia! —
Pelo caminho eterno por que vou,
Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...

A última canção do Homem...

Rei da Criação, por mim mesmo aclamado,
Quis, vencendo o Destino, ser o Rei
De todo esse Universo ilimitado
Das idéias que nunca alcançarei...
Inteligência... esse anjo rebelado
Tombou sem ter sabido a eterna lei:
Pensei demais e, agora, apenas sei
Que tudo que eu pensei estava errado...
De tudo, então, ficou somente em mim
O pavor tenebroso de pensar,
Porque as idéias nunca tinham fim...
Que mais resta da fúria malograda?
Um bailado de frases a cantar...
A vaidade das formas... e mais nada...