"Cidadão Petropolitano Honorário",
membro da Academia Petropolitana de Letras e da Academia Petropolitana de
Poesia: honrosas referências que não poderiam deixar de ser conferidas a .
Fernando Py (Rio de Janeiro, 1935), poeta,
crítico literário, tradutor – é dele
a versão considerada definitiva,
publicada no Brasil na década de
1990, da obra do grande romancista francês Marcel Proust, Em busca do tempo perdido.(mas traduziu também os franceses Honoré
de Balzac e Marguerite Duras ,o norte-americano
Saul Bellow, o ensaísta inglês John Gledson).
Como enfatiza Gerson Valle, da Academia
Petropolitana de Letras, reportando ao livro do poeta e crítico Pedro Lyra, A poesia da geração 60 – em que
caracteriza esta por seu sincretismo. – o poeta que é exemplo da passagem de uma a outra
geração é exatamente
Fernando Py, que possui, em parte, “certo sincretismo” da geração 60 e
guarda algum formalismo típico da geração 45, não só com sonetos e sextinas, e
até com uma sisudez emblemática dos simbolistas ou parnasianos mesmo nos versos
livres”
Py é um ‘poeta da trajetória’, a passagem do
tempo como a própria essência da vida, e de sua criação poética: se no primeiro livro,de 1962, A aurora de vidro., a infância (a “aurora”) para ele uma idade de ouro, luminosa, clara,
em oposição ao livro de mais de três décadas depois, Sol nenhum, onde a maturidade se equivale à escuridão da noite, à
morte. -- a trajetória como o inverso do que acontece com o “homem civilizado,
que vai da inocência, de um estado nebuloso de consciência, para um estado de
lucidez que tem constituído a grandeza e, também, a miséria humana”.
A poética de Py segue um percurso, no
qual sente-se saturado da luz da
ciência, e ruma em busca de outras
luzes, “do outro lado da esfera esplendente ”.-- luzes que se vislumbram em sua obra, entre elas uma “luz sobre o texto”, no livro A construção e a crise, ,de 1969, onde o
poeta social vale-se da metapoesia
para considerar o momento impróprio(eram
os ‘anos de chumbo’ do regime político) à poesia.; ou uma “luz sobre a amada”: a lírica amorosa em Vozes do corpo e em Dezoito
sextinas para mulheres de outrora, ambos de 1981; atingindo, na
antológica Antiuniverso, 1994 , a “luz meridiana”, epopéia moderna “fazendo um passeio cósmico”
na qual o poeta incorpora-se com o
estudioso de astronomia, chegando a um “universo paralelo da poesia”; e
finalmente a “luz sobre o próximo” em Sentimento da morte, 2003.. E assim , Fernando Py tece sua poesia
com elementos que celebram sobretudo a vida -- a infância, a nostalgia da adolescência, o encontro
com a maturidade, a velhice crepuscular
-- por meio de inventários e evocações do passado mas também com reflexões do presente e alusões futuristas.
poesia : Aurora
de vidro (1962); A construção e a
crise (1969); Quatro poetas modernos(1976); Vozes do
corpo (1981); Dezoito sextinas para mulheres de outrora (1981); Antiuniverso
(1994); Sol nenhum (1998) ; Antologia
poética :40 anos de poesia: 1959-1999 (2000); Sentimento da morte & Poemas anteriores (2003); Setenta
poemas escolhidos (2005) . prosa (ensaio e crítica): Carlos
Drummond de Andrade: poesia (1998); Bibliografia
comentada de Carlos Drummond de Andrade (2002); Chão da
crítica (1984); Uma poesia dialógica: nove resenhas da obra de Pedro Lyra (2003); O poeta
Coelho Vaz (2004).;
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O Verbo
o verbo
preexiste
às areias do tempo
o verbo
perfaz o mundo
em seus números
o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo
o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra
o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz
o verbo
mal se conquista
- a doma
é acerba
o verbo
se averba
Indagações
a Leonardo
Fróes
De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.
De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?
Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?
Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.
Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?
Em que páramos finais
existe nossa redenção?
Encontro
A antiga namorada
ressurgindo na rua
você enxovalhado
cabelo e barba por fazer
vida de sacrifício
meio se esconde
e ela passa
ainda jovem
talvez mais bonita
mais mulher
bem tratada
vestido caro
você recorda
o primeiro beijo
aquela paixão eterna
o baile de formatura
a profissão abandonada
vai levando nos olhos
o tipo mignon
que outros braços
e beijos
farão vibrar
recorda
poemas que lhe fez
o livro de estréia
tão pobre e tão longe
tão dela impregnado
sente-se velho
acabado
saudade da juventude
mas foi a sua opção
os filhos de outra mulher
a literatura
vida tão avessa
assume
e na volta da esquina
desaparece
a antiga namorada.
Cave Canem
Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.
Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.
Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES
Canto de muro
a Mário
Quintana
Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.
Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.
Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranqüila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.
Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.
Morte íntima
a Eliane
Zagury
Quatro sílabas viajam
no rumo de ninguém.
Quatro caladas mágoas
já sem uso em palavras.
Língua cortada, o eco
regressando à origem
que se pressente oblíqua
anterior à linguagem.
A idéia segue a sílaba
em seu perecimento
mantendo-se intranqüila
durante algum momento.
Sejam dias ou séculos
igual será o lamento
desse ruído - som morto
cavado na laringe.
Persista embora o símbolo
constante do alfabeto
os signos não reunidos
jamais na mesma sílaba
lerão palavra idêntica
a essas duas minúsculas
outrora pronunciadas
carreando emoções mágicas.
A morte dessas sílabas
completa a do indivíduo.
Confissão
a lvan Junqueira
Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.
Sextina 2
a Cyro Pimentel
A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.
O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.
De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.
Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.
Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.
Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.
Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.
Fui eu
Fui eu esse menino que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.
Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.
Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.
Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.
O beco
a Carlos Drummond de Andrade
Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.
Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem
seres e coisas que vejo?
Quem derrama nesse recanto do
universo
o sinal de vida, a marca
indelével
da matéria organizada?
O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?
O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?
Após o banho, nua
Após o banho, nua
ainda, o corpo húmido
ao meu encontro, visão,
relembro, cálido êxtase,
os seios entrevistos
no decote frouxo, agora, nua,
toalha molhando-se, ressurgem
após o banho,
fremindo, suave embalo, avidez
de língua e mãos, nua, vens,
perfume, sulcos na pele,
ansiada espera, curvas, a entrega
ao meu olhar, bocas, rosa
túmida, pétala, sucção, espuma,
resplandeces para mim, nua,
após o banho.
O esquizofrênico
No seu delírio vai compondo os
gestos
diante da platéia inexistente;
ele próprio é a platéia, mas não
sente
do espetáculo mais que os pobres
restos
que a memória lhe acende nos
esgares
da fisionomia descomposta.
No seu delírio a fala, sem
resposta,
se resolve em grunhidos
singulares,
num discurso arbitrário de
fonemas
reduzidos à simples expressão
de sons primevos que de sempre
estão
revelando carências, e as
extremas
ruínas de seu cérebro em pedaços.
Os gestos multiplicam-se em
algemas
e a platéia se cala, membros
lassos.
Duplo
Olho-me adentro sem cessar e no
silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me
exprimo
nesse mim que se esconde e se
retrai no vago
espaço de urna célula e vai
construindo
outro mim de mim, disposto em
gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao
espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à
curio-
sidade de meus olhos lacerados,
cegos
de tanta luz enganosa, nem se
derrama
sobre a superfície polida e
indiferente,
enquanto cresce em mim a presença
de estranho
ser não eu, de irrevelada e
própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca
de angústia
e contradições simétricas
envolventes,
e me explora e me assimila; mas
sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e
sinto,
como de dois corpos iguais
maté4ria viva,
e me faço e refaço e me desfaço
sempre
e recomeço e junto a mim eu
mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono,
dividido
entre mim e mim na batalha
interminável...
Quarenta anos
a Carlos Nejar
Sinto a velhice em mim oculta e
rude
em meio ao sol e ao riso da
manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me
ilude
esse carinho, essa algazarra. O
alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e
ruga
e os caminhos só descem, pesa o
fardo,
e entre cinzas de mim, alheio,
ardo,
de um fogo já morrente em sua
fuga.
Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.
Tango
Um tango me persegue desde a
infância
no canto, no piano, na
memória
e se me impõe à voz, timbrando
vário
são prolongar em mim a sua
essência
nos dedos de meu pai sobre o
teclado.
Não somente: transporta desde
longo
tempo a escrita do pai, letra de
tango
no papel sempre então visto e
relido.
Um tango me persegue: sua
marca
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se
acerca.
E letra e pai e som, tudo afinal
gira ao compasso do tango fatal.
Nevoeiro
a meu irmão
O verso agoniza
na folha. .
Luz contínua.
verdevermelha
A noite apodrece
em música.
.
Todos na sala
esperam.
.
A aurora há-de vir:
sem consolo.
.
Onde se (des)faz o amor
antigo?
Tudo foge. Tudo é
.
desierto.
Fim de festa
a Emil de Castro
corpo desfeito
de suor
inertes móveis desdenhados
bolo de puro enfeite sem cuidar
migalhas xadrezando a toalha suja
música breve
sugerindo
ritmos de
sono
morte
lentamente
na pele o sal
úmidos membros
lassos
agitação caindo
noite sempre
lâmina de
angústia sob as
pálpebras
m e d o
medo intenso
e mais ninguém
Ensaio sobre
o fim
a José Edson Gomes
Contempla este edifício de
cimento
e fezes.
Contempla-o: segredos abrem-se a
teus olhos
no ranger dos gonzos, na ferrugem
amarga do metal mordido.
Desfere a vista contra estas
colunas,
estas paredes, pesquisa os
alicerces.
0 material que neles se empregou
é sangue e ossos, humo
desprezível,
suor de peitos e braços, pêlos
rudes
impregnados de cólera e onde
assoma
a lágrima impotente da miséria.
Desfere tua vista, puro raio,
vento noturno desfolhando telhas,
sobre o sujo edifício onde a
ambição
ergueu-se em desafio ao céu
tranquilo.
Do teu conciso olhar
nascerão novos tiros mais adultos
nascerão juventudes reduzindo
o edifício opressor a lodo e
cinza,
envolvendo estruturas, certos
homens
que em si o mal fabricam, sêde e
fome,
este mundo em pedaços que se
esfuma
ao ligeiro calor de olhos
impávidos
enquanto pela noite, rosa e luz,
já distingo o futuro, companheiro
— a nova construção sem
privilégios.