terça-feira, 13 de novembro de 2012

Fernando Py e Petrópolis [ Quarteirão Brasileiro - II]


"Cidadão Petropolitano Honorário", membro da Academia Petropolitana de Letras e da Academia Petropolitana de Poesia:  honrosas referências  que não poderiam deixar de ser conferidas a . Fernando Py (Rio de Janeiro, 1935), poeta,  crítico literário, tradutor – é dele  a versão  considerada definitiva, publicada no Brasil na  década de 1990,  da obra do grande romancista  francês Marcel Proust, Em busca do tempo perdido.(mas traduziu também os franceses Honoré de Balzac e Marguerite Duras ,o norte-americano  Saul Bellow, o ensaísta inglês John Gledson).
Como enfatiza Gerson Valle, da Academia Petropolitana de Letras, reportando ao livro do poeta e crítico Pedro Lyra, A poesia da geração 60 – em que caracteriza esta por seu sincretismo. – o poeta que é  exemplo da passagem de uma a outra geração  é  exatamente  Fernando Py, que possui, em parte, “certo sincretismo” da geração 60 e guarda algum formalismo típico da geração 45, não só com sonetos e sextinas, e até com uma sisudez emblemática dos simbolistas ou parnasianos mesmo nos versos livres”
Py é um ‘poeta da trajetória’, a passagem do tempo como a própria essência da vida, e de sua criação poética:  se no primeiro livro,de 1962, A aurora de vidro., a  infância (a “aurora”)  para ele uma idade de ouro, luminosa, clara, em oposição ao livro de mais de três décadas depois, Sol nenhum, onde a maturidade se equivale à escuridão da noite, à morte. -- a trajetória como o inverso do que acontece com o “homem civilizado, que vai da inocência, de um estado nebuloso de consciência, para um estado de lucidez que tem constituído a grandeza e, também, a miséria humana”.
A poética de Py segue um percurso, no qual  sente-se saturado da luz da ciência, e ruma  em busca de outras luzes, “do outro lado da esfera esplendente ”.-- luzes que se vislumbram  em sua obra, entre elas uma  “luz sobre o texto”, no livro A construção e a crise, ,de 1969, onde o poeta social vale-se da  metapoesia para  considerar o momento impróprio(eram os ‘anos de chumbo’ do regime político) à poesia.; ou  uma “luz sobre a amada”: a lírica amorosa em Vozes do corpo  e em Dezoito sextinas para mulheres de outrora, ambos de 1981; atingindo, na antológica  Antiuniverso, 1994 , a “luz meridiana”,  epopéia moderna “fazendo um passeio cósmico” na qual o  poeta incorpora-se com o estudioso de astronomia, chegando a um “universo paralelo da poesia”; e finalmente   a  “luz sobre o próximo” em Sentimento da morte, 2003.. E assim , Fernando Py tece sua poesia com  elementos   que celebram sobretudo a vida --  a infância, a nostalgia da adolescência, o encontro com a maturidade, a velhice crepuscular  -- por meio de inventários e evocações do passado mas também com  reflexões do presente e alusões futuristas.
poesia :  Aurora de vidro (1962); A construção e a crise (1969);  Quatro poetas modernos(1976);  Vozes do corpo (1981);  Dezoito sextinas para mulheres de outrora (1981);  Antiuniverso (1994);  Sol  nenhum (1998) ;  Antologia poética :40 anos de poesia: 1959-1999 (2000); Sentimento da morte & Poemas anteriores (2003);  Setenta poemas escolhidos (2005) . prosa (ensaio e crítica):  Carlos Drummond de Andrade: poesia (1998); Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (2002);  Chão da crítica (1984);  Uma poesia dialógica: nove resenhas da obra de Pedro Lyra (2003);  O poeta Coelho Vaz (2004).;
________________ 

O  Verbo

o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma
é acerba

o verbo
se averba

Indagações
           a Leonardo Fróes

De argila e de sangue
somos feitos. Não mais
que a imponderável ânsia
de ascender ao divino
transportando conosco
este fardo humano
de organismo imperfeito.

De suor e de lágrimas
nos tornamos. Quanto
esperamos saber
em nossa ignorância
no intuito de voar
à excelsa plenitude
do espírito supremo?

Quem nos formou? Quem
imaginou e fez
energia e matéria,
todo o Universo
que vemos e sabemos
e os demais mundos todos
que jamais saberemos?

Deixamos o que sabemos
— e o mais que desconhecemos —
aos que depois a terra
habitarem: esses homens
futuros que ignoramos
e mal podemos pressentir
pelo que hoje apresentamos.

Aonde vamos? Aonde
repousará nossa alma
a contínua indagação
que nos eleva além
de simples animais?
Em que páramos finais
existe nossa redenção?

Encontro

A antiga namorada
ressurgindo na rua
você enxovalhado
cabelo e barba por fazer
vida de sacrifício
meio se esconde
e ela passa
ainda jovem
talvez mais bonita
mais mulher
bem tratada
vestido caro
você recorda
o primeiro beijo
aquela paixão eterna
o baile de formatura
a profissão abandonada
vai levando nos olhos
o tipo mignon
que outros braços
e beijos
farão vibrar
recorda
poemas que lhe fez
o livro de estréia
tão pobre e tão longe
tão dela impregnado

sente-se velho
acabado
saudade da juventude
mas foi a sua opção
os filhos de outra mulher
a literatura
vida tão avessa
assume
e na volta da esquina
desaparece
a antiga namorada.

Cave Canem

Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES

Canto de muro
               a Mário Quintana

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranqüila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

Morte íntima
             a Eliane Zagury

Quatro sílabas viajam
no rumo de ninguém.
Quatro caladas mágoas
já sem uso em palavras.
Língua cortada, o eco
regressando à origem
que se pressente oblíqua
anterior à linguagem.

A idéia segue a sílaba
em seu perecimento
mantendo-se intranqüila
durante algum momento.
Sejam dias ou séculos
igual será o lamento
desse ruído - som morto
cavado na laringe.

Persista embora o símbolo
constante do alfabeto
os signos não reunidos
jamais na mesma sílaba
lerão palavra idêntica
a essas duas minúsculas
outrora pronunciadas
carreando emoções mágicas.

A morte dessas sílabas
completa a do indivíduo.

Confissão
        a  lvan Junqueira

Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.

Sextina 2
      a Cyro Pimentel

A vida me anoitece
de sofrê-la no açoite
e vivê-la vazio
da beleza que a tece
— mudo me faço e noite
cego surdo e sombrio.

O futuro é sombrio
quando a alma anoitece
e me engolfo na noite
e me entrego ao açoite
— voltas que a vida tece
nesse abismo vazio.

De coração vazio
escondo-me em sombrio
casulo que me tece
a vida que anoitece
a alma ao pleno açoite
que me oferece a noite.

Faço-me a própria noite
e em minh'alma o vazio
silêncio lembra o açoite
latejante sombrio
da idade que anoitece
— fiação que me tece.

Pois tudo que me tece
lembra a pedra da noite
no peito que anoitece
— a alma sente o vazio
desse peso sombrio
à maneira de açoite.

Claro nítido açoite
é o que a vida me tece
extraindo o sombrio
refugo dessa noite
— deixa na alma o vazio
do corpo que anoitece.

Este açoite anoitece
e me tece vazio
no sombrio da noite.

Fui eu

Fui eu esse menino que me espia  
- melancólico olhar, sereno rosto,  
postura fixa e o todo bem composto -  
no retrato que o tempo desafia.  
Fui eu na minha infância fugidia  
de prazeres ingênuos, e o desgosto  
de sentir tão efêmera a alegria  
bem depressa trocada em seu oposto.  

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa  
e tudo altera nem sequer deixou  
um grão de infância feito esmola escassa.  
Fui eu: e na figura só ficou  
o olhar desenganado, na fumaça  
em que a criança inteira se mudou. 

O beco
        a Carlos Drummond de Andrade

Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.

Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem 
seres e coisas que vejo?

Quem derrama nesse recanto do universo
o sinal de vida, a marca indelével
da matéria organizada?

O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?

O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?

Após o banho, nua

Após o banho, nua
ainda, o corpo húmido
ao meu encontro, visão,
relembro, cálido êxtase,
os seios entrevistos
no decote frouxo, agora, nua,
toalha molhando-se, ressurgem
após o banho,
fremindo, suave embalo, avidez
de língua e mãos, nua, vens,
perfume, sulcos na pele,
ansiada espera, curvas, a entrega
ao meu olhar, bocas, rosa
túmida, pétala, sucção, espuma,
resplandeces para mim, nua,
após o banho.

O esquizofrênico 

No seu delírio vai compondo os gestos
diante da platéia inexistente;
ele próprio é a platéia, mas não sente
do espetáculo mais que os pobres restos
que a memória lhe acende nos esgares
da fisionomia descomposta.

No seu delírio a fala, sem resposta,
se resolve em grunhidos singulares,
num discurso arbitrário de fonemas
reduzidos à simples expressão
de sons primevos que de sempre estão
revelando carências, e as extremas 
ruínas de seu cérebro em pedaços.

Os gestos multiplicam-se em algemas
e a platéia se cala, membros lassos.

Duplo

Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia

e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais maté4ria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...

Quarenta anos
             a Carlos Nejar

Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e ao riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.

 Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.

Tango                                                                    

Um tango me persegue desde a infância                 
no canto, no piano, na memória                               
e se me impõe à voz, timbrando vário                     
são prolongar em mim a sua essência
nos dedos de meu pai sobre o teclado.

Não somente: transporta desde longo
tempo a escrita do pai, letra de tango
no papel sempre então visto e relido.

Um tango me persegue: sua marca 
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se acerca.

         E letra e pai e som, tudo afinal
         gira ao compasso do tango fatal.

Nevoeiro                                                               
            a meu irmão                                                           

O verso agoniza                                                      
na folha.                                                                 .          

Luz  contínua.
verdevermelha                                                                                                       

A noite apodrece                                                      
em música.                                                             .

Todos na sala                                                         
esperam.                                                                 .

A aurora há-de vir:                                                   
sem consolo.                                                            .  

Onde se (des)faz o amor                                            
antigo?                                                                    

Tudo foge. Tudo é                                                     .                                                                   desierto.

Fim de festa
         a Emil de Castro

corpo  desfeito  de  suor
inertes móveis desdenhados
bolo de puro enfeite sem cuidar
migalhas xadrezando a toalha suja
música  breve  sugerindo
ritmos  de  sono
                      morte 
                               lentamente
na pele o sal
                   úmidos   membros   lassos
agitação  caindo
                   noite  sempre
lâmina  de  angústia  sob  as  pálpebras
               m e d o
medo  intenso  e  mais  ninguém

Ensaio  sobre  o  fim
            a José Edson Gomes

Contempla este edifício de cimento
e fezes.

Contempla-o: segredos abrem-se a teus olhos
no ranger dos gonzos, na ferrugem
amarga do metal mordido.

Desfere a vista contra estas colunas,
estas paredes, pesquisa os alicerces.

0 material que neles se empregou
é sangue e ossos, humo desprezível,
suor de peitos e braços, pêlos rudes
impregnados de cólera e onde assoma
a lágrima impotente da miséria.

Desfere tua vista, puro raio,
vento noturno desfolhando telhas,
sobre o sujo edifício onde a ambição
ergueu-se em desafio ao céu tranquilo.

Do teu conciso olhar
nascerão novos tiros mais adultos
nascerão juventudes reduzindo
o edifício opressor a lodo e cinza,
envolvendo estruturas, certos homens
que em si o mal fabricam, sêde e fome,
este mundo em pedaços que se esfuma
ao ligeiro calor de olhos impávidos
enquanto pela noite, rosa e luz,
já distingo o futuro, companheiro
— a nova construção sem privilégios.







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